26 de dez. de 2012

monumento a um jovem monolito


O Alex Castro propõe, no Papo de Homem (aqui), que, como um ritual, este texto do André Dahmer seja lido todo fim de ano - e que nos perguntemos, no final: então, estou virando (ou já virei?) um monolito?

"Ao completar trinta anos, você ganhará os olhos duros dos sobreviventes. Só verá sua amada na parte da manhã e da noite, só encontrará seus pais de vinte em vinte dias. E quando seus velhos morrerem, você ganhará um dia de folga para soluçar e gritar que deveria ter ficado mais próximo deles. Sorria, você é um jovem monolito e a vida vai ser pedrada. O trabalho é uma grande cadeia e você sentirá muito alívio por ter uma. A cadeia engrandece o homem, o sangue do dinheiro tem poder. Reze. Reze ajoelhado por uma carreira, dê a sua vida por ela. Viva como todo mundo vive, você não é melhor que ninguém. Porque o dinheiro move montanhas, o dinheiro é a igreja que lhe dará o céu. Sorria, você é um jovem monolito e o mundo é uma pedreira. Eles irão moer você todinho. De brinde, muitos domingos para chorar sua falta de tempo ou operar uma tendinite. Nas terríveis noites de domingo, beba. Beba para conseguir dormir e abraçar mais uma monstruosa segunda-feira. Aquela segunda-feira que deixa cacetes moles e xoxotas secas para sempre. A vida é uma grande seca, mas ninguém sente calor: Nas salas refrigeradas, seus colegas de trabalho fabricam informação e, frios, sonham com o dia dez do próximo mês. Você é o Babaca do Dia Dez, não há como mudar o seu próprio destino. Babaca que acorda assustado, porque ninguém deve atrasar mais de vinte e cinco minutos. Eles descontam em folha e você é refém da folha, do salário, do medo. Ninguém tem o direito de ser feliz, mas você ganhará a sua esmola de seis feriados por ano. E todos nós vamos enfrentar, juntos, um imenso engarrafamento até a praia. Para fingir que ainda estamos vivos. Para mostrar que ainda somos capazes de sentir prazer. Para tomar um porre de caipirinha sentado em uma cadeirinha de praia. É uma grande solução. E você ainda ganhará quinze dias de férias para consertar a persiana, pagar contas, fazer uma bateria de exames. Ninguém quer morrer do coração, ninguém quer viver de coração. Eu não duvido da sua capacidade de vencer: Lembre disso no primeiro divórcio, no primeiro infarto, no primeiro AVC."


25 de dez. de 2012

o que o natal nos propõe


De Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, no Adital:

As propostas para os dias de Natal são as mais diversas. Agências de turismo oferecem passeios paradisíacos. No comércio, há sempre um Papai Noel para dar algum presente que a pessoa tem de comprar. E em muitas famílias e empresas, Natal é época de comer e beber desenfreadamente. Além dessas propostas consumistas, Natal pode ser ocasião de bons encontros e confraternizações. Entretanto, se você quiser mais do que isso, lembre-se que, originalmente, Natal significa renascimento. Embora ninguém saiba a data exata do nascimento de Jesus, desde o século IV, os cristãos tomaram o 25 de dezembro, solstício do inverno no hemisfério norte, como referência para celebrar a vinda do Cristo, como sol que ilumina e dá sentido novo a nossas vidas. No hemisfério norte, o sol quase desaparece totalmente, quando, a partir desse dia do solstício, como que renasce e volta a brilhar no horizonte. Assim também, os cristãos festejam o nascimento do Cristo que renasce em nós para nos fazer renascer com ele. Por sua origem de festa solar, o Natal é mais a celebração do renascimento do que do simples nascer. Aliás, o que significaria nascer, se não fosse para se dispor a um constante renascer? O poeta Pablo Neruda afirmava: "Nascemos como esboço – É preciso sempre renascer. Nascemos para renascer”. Podemos dizer que renascemos toda vez que realizamos os passos que a vida exige. Eles acarretam um superar uma etapa que exige de nós como morrer para o jeito de ser anterior e assumir o compromisso de renascer para uma nova etapa de vida. Continuamente. Paulo escreve: "Quando eu era criança, pensava como criança, falava como criança. Ao me tornar adulto, deixei as coisas de criança” (1 Cor 13, 11). Em cada idade física, o ser humano larga uma idade e renasce para outra. Em uma conversa com Nicodemos, Jesus explica: "O que nasce conforme o mundo (ou no modo de falar hebraico: o que nasce da carne) é carne, ou seja, do mundo. O que nasce do Espírito é espírito. Por isso, insisto, é preciso nascer de novo, nascer do Espírito” (Jo 3, 7).

O sentido mais profundo da celebração do Natal é nos dispor a renovar em nós essa disposição do renovar-se interiormente, ou como diz Paulo: deixar de lado o velho modo de ser e revestir-se interiormente de um novo modo de ser. Conforme os evangelhos, foi isso que Jesus fez durante toda a sua vida. "Ele cresceu em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 40). Em grego, o termo "Cristo” significa "ungido” ou "consagrado”. Na história bíblica, vários profetas e personagens importantes foram chamados de Cristo ou de consagrado. Jesus de Nazaré viveu essa vocação de modo tão profundo e pleno que, ao dizermos "Jesus é o Cristo, o consagrado de Deus”, tomamos essa afirmação como se fosse um nome próprio: Jesus Cristo. E ele faz de nós irmãos seus porque nos dispõe para sermos também, cada um/uma do seu modo, Cristos, consagrados de Deus nesse mundo para testemunhar o projeto que Deus tem de amor e justiça para o universo.

A festa do Natal é a celebração desse novo renascimento. A cada ano, marcamos um passo a mais nesse caminho. Cada pessoa é chamada a fazer de sua vida uma gruta natalina, uma caverna que, como útero grávido, acolha o nascimento do novo ser que somos chamados a ser e que no Natal nos comprometemos a nos tornar: humanos como Jesus.

24 de dez. de 2012

nossa senhora do silêncio

Escultura: José Ismael

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos.

É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.

Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos.

Eu não sei quem tu és. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Como não te sonhar? Como não te sonhar Senhora das Horas que passam? Madona das águas estagnadas e das algas mortas. Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa. Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono.

Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte. Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa. Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Sê a Noite Total e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação... Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos.

Realizadora dos absurdos. Que o teu silêncio me embale, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte Anjo da Guarda dos abandonados. Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos. Por isso eu não te penso nem te sinto. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua.

- Fernando Pessoa (via)

23 de dez. de 2012

o balconista arnaldo branco


Isso foi depois da internet, mas antes do "torrent": fui balconista de locadora de vídeo. "Que nem o Tarantino!", sim já ouvi essa várias vezes, só me falta a carreira em Hollywood.

Entrei em 1998, ano da transição do VHS para o DVD, portanto o aviso para rebobinar a fita ainda pairava sobre a minha cabeça em um cartaz na parede, como um mandamento solene.

Já estava velho para a função ("contingências do mercado de trabalho" era a desculpa que usava com a minha mãe), então gostava de fingir que estava lá pela oportunidade de estudar a plateia dos filmes que faria no futuro.

Não era uma mentira completa; na verdade poderia prestar consultoria para produtores de cinema sobre o que nossos espectadores querem ver na tela. Ou seja, nada de preto e branco, pouca conversa ("filme desse Woody Allen só tem gente falando") e é bom maneirar no experimentalismo: o mantra do público médio de locadora é "queria um filme leve, hoje não estou a fim de pensar".

E pornografia, por exemplo. Pessoas de vários estratos sociais pegavam filmes de sacanagem, mas percebi um estranho padrão entre os porteiros da área: só alugavam pornôs brasileiros. Perguntei o porquê e disseram que preferiam as mulheres gemendo em português; aparentemente existe diferença entre o "yes" e o "sim" na hora de fantasiar.

Mas não usei minhas horas de trabalho só para praticar pesquisa de mercado. Guardei muitas histórias bacanas, embora na maior parte das vezes estivesse cercado por pessoas apressadas e sem muita familiaridade com o conceito de fila. Na época, queria matar o autor da frase "o cliente sempre tem razão". Meu herói era Randal Graves, o personagem de Jeff Anderson em "O Balconista", filme do Kevin Smith de 1994, que tratava mal todos que tivessem o azar de entrar no seu estabelecimento.

Já tive que ajudar a separar uma briga de socos entre um cliente e um entregador (o entregador tinha razão, viu o que disse sobre a tal frase?), precisei empatar um casal que se trancou no banheiro e fui descontado na minha primeira semana porque um cara se associou com uma identidade falsa e levou oito lançamentos. Ok, essa não foi uma história bacana.

Alguns sócios da locadora eram umas figuras, como o cardíaco que ligava pedindo sempre pornôs e cigarros malocados no saco de entregas. Volta e meia uma ambulância parava em frente ao seu prédio. Tinha também a mulher chata de uma figura importante da MPB; quando ela finalmente brigou com o dono e pediu para se desassociar, demos uma festa para rasgar sua ficha.

A locadora ficava no Jardim Botânico, no meio da fina flor da burguesia carioca, o que foi mais uma lição sobre o "ethos" das nossas elites: era uma choradeira para pagar qualquer dívida, mínima que fosse. Uma cineasta (vou manter seu anonimato, ao qual aliás está acostumada) discutiu comigo por coisa de centavos em balas de menta, alegando achar que eram cortesia. Por mim até seriam, não fossem os balconistas também responsáveis pela "bombonière" e pelo fechamento do caixa, nos obrigando ao trabalho de corno de contar chiclete por chiclete e comparar o resultado com o montante na registradora --com desconto no salário quando os valores não batiam.

Enfim, tempo bom que não volta mais, graças a Deus.

Queria dedicar esse texto ao saudoso Marcão (que nos deixou em 2011), meu colega de balcão e rubro-negro como eu, e ao cliente vascaíno que torrava tanto o nosso saco que nos fez bater o camelódromo do Saara um dia inteiro até conseguirmos duas camisas do Real Madrid para recebê-lo no dia da derrota na final do mundial de clubes. O cara nunca mais voltou.

- Arnaldo Branco, cartunista, na Ilustríssima (Folha de S. Paulo) de hoje.

a 27ª vítima


De Dorrit Harazim, publicado no Globo de hoje (leia na íntegra aqui), sobre o massacre de Newtown (mais aqui)

(...) Todas as faixas, desenhos, mensagens, velas, bichos de pelúcia, buquês de flores que brotaram em Newtown honram os “26 anjos que nos guiarão”. Essas 20 crianças e 6 adultos viverão para sempre na memória local.

Só que foram 27 os fuzilados pelo jovem Adam Lanza, de 20 anos. Sua primeira vítima daquela tenebrosa sexta-feira 13 de dezembro foi a própria mãe, morta em casa com quatro tiros de rifle calibre .22 na cabeça. Só depois o surtado Adam rumou para a escola fundamental, onde executou as outras 26 vítimas.

Um único tributo, rabiscado numa folha de papel colada num pedaço de madeira, presta homenagem a Nancy Lanza em Newtown. “Outros se consolam mutuamente por escolhas que você teve de fazer sozinha. Quem nunca errou atire a primeira pedra”, diz um trecho do texto. (...)

Como se sabe, tanto o rifle de assalto Bushmaster M4 com o qual Adam executou a matança como as outras quatro armas encontradas em sua casa pertenciam à mãe e estavam devidamente registradas. A sra. Lanza seguia com convicção os preceitos de quem, nos Estados Unidos, se declara “adepto da sobrevivência” — grupo de pessoas em permanente estado de alerta para a erupção do caos social no país. Estocar mantimentos e armas e aprimorar a pontaria para se proteger do perigo fazem parte dos cuidados essenciais dessa tribo. (...)

Com o filho, a adepta da sobrevivência fazia exercícios regulares de tiro numa academia da cidade.

Segundo análise de dados estatísticos feita por Nate Silver, o festejado guru da mídia que acertou todas as previsões da reeleição de Obama no mês passado, a variável mais confiável para se prever a intenção de voto de um eleitor, nos Estados Unidos, é a posse de armas. Gênero, raça, faixa etária, renda familiar, educação, religião, domicílio — nenhum desses fatores é tão determinante na intenção de voto quanto a posse de armas.

Mais da metade dos casais com filhos pequenos que votam no Partido Republicano tem armas em casa. Entre eleitores democratas, esse número cai para “apenas” um em cada quatro casais. A média nacional americana está em três armas por domicílio.

Basta assistir à televisão nos Estados Unidos para saber que a cada ano 34 civis são mortos por armas de fogo. Em apenas seis meses, esse total iguala o número de militares americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão.

Nancy Lanza tinha, em casa, um filho problema e cinco armas. Inicialmente os moradores de Newtown a prantearam como vítima inocente, a ser computada e incluída nos memoriais. Pouco a pouco, sua memória começa a ser deslocada da condição de vítima para a de corresponsável pela tragédia de Newtown.

O problema não era apenas o filho, o morto de número 28 da chacina.

Menos de duas horas após o término do momento nacional de silêncio, o CEO da Associação Nacional do Rifle, a robusta entidade que promove e defende o armamento individual de todo cidadão, saiu da retranca que mantivera desde o massacre. “Só uma pessoa do bem com uma arma na mão é capaz de deter uma pessoa do mal que tem uma arma na mão”, declarou sem pestanejar Wayne LaPierre, em entrevista coletiva. Culpou a mídia, os videogames e a indústria do entretenimento pela matança e aproveitou para lançar novo apelo para que toda escola americana adote seguranças armados. (...)

Como observa Michael Moore (já postei aqui, mas nunca é demais repetir): "Somos um povo que se assusta com facilidade e é fácil de ser manipulado pelo medo. De que temos tanto medo, que necessitamos ter 300 milhões de armas de fogo em nossas casas? Quem vai nos ferir? Por que a maior parte dessas armas se encontra nas casas de brancos, nos subúrbios ou no campo? Talvez, se resolvêssemos nosso problema racial e nosso problema de pobreza (uma vez mais, somos o número um com maior número de pobres no mundo industrializado), houvesse menos pessoas frustradas, atemorizadas e encolerizadas estendendo a mão para pegar a arma que guardam na gaveta."

* * *


Desde semana passada, já vi esse texto em vários lugares (leia na íntegra aqui). É o depoimento pungente da mãe de um menino que talvez se pareça com Adam Lanza, o rapaz que cometeu o massacre de Newtown.

Eu sou a mãe de Adam Lanza

"(...) Eu vivo com um filho que tem problemas mentais. Amo meu filho. Mas ele me apavora.

Algumas semana atrás, Michael pegou um faca e ameaçou me matar e depois a si mesmo porque eu pedi que ele devolvesse na biblioteca os livros que já estavam atrasados. Os irmãos de 7 e 9 anos sabiam qual era o plano de emergência — correram para o carro e se trancaram antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa. Eu consegui tirar a faca de Michael, e depois metodicamente recolhi todos os objetos cortantes da casa e os coloquei dentro de uma sacola gigante que agora anda sempre comigo. Depois de tudo isso, ele seguiu gritando, me insultando e ameaçando me matar e me machucar.

O conflito terminou com três policiais corpulentos e um paramédico lutando com o meu filho para colocá-lo em um maca e levá-lo para a emergência do hospital local. A ala psiquiátrica não tinha nenhum leito livre no dia. Michael foi atendido no pronto socorro e nos mandaram de volta para casa com uma prescrição de Zyprexa e um retorno agendado com um psiquiatra infantil.

Ainda não sabemos o que há de errado com Michael. Espectro do Autismo, TDAH, Transtorno Explosivo Intermitente foram mencionados em reuniões com assistentes sociais, terapeutas, professores e pedagogos. Michael tem tomado uma enorme quantidade de antipsicóticos e drogas alteradoras de humor. Nada parece funcionar. (...)

No terceiro dia, ele era o meu calmo e doce garoto de novo, se desculpando e prometendo melhorar. Eu escutei essas promessas durante anos. Eu não acredito mais nelas. No formulário de internação, na pergunta “O que você espera do tratamento?”, eu escrevi, “preciso de ajuda”.

E eu preciso mesmo. Esse problema é grande demais para eu administrar sozinha.

Eu estou dividindo essa história porque eu sou mãe de um Adam Lanza. Eu sou mãe de um Dylan Klebold e um Eric Harris. Eu sou mãe de um James Holmes. Eu sou mãe de um Jared Loughner. Eu sou mãe de um Seung-Hui Cho. E esses rapazes — e suas mães — precisam de ajuda. No despertar de mais uma tragédia nacional, é fácil falar sobre armas. Mas é hora de falarmos sobre doenças mentais.

De acordo com uma revista especializada, desde 1982 —, 61 assassinatos em massa envolvendo armas de fogo aconteceram no país. Desses, 43 dos assassinos eram homens brancos, e apenas uma era mulher. A revista voltou seu foco para a questão dos assassinos terem obtido ou não suas armas legalmente (a maioria sim). Mas esse visível sinal de problema mental deveria nos levar a considerar quantas pessoas nos Estados Unidos vivem com medo, como eu vivo.

Quando eu perguntei para o assistente social que cuida do meu filho quais eram as minhas opções, ele respondeu que a única coisa a fazer é acusá-lo de um crime. “Se ele estiver no sistema, eles vão criar um rastro de documentos”, disse. “Essa é a única forma de conseguir que algo seja feito. Ninguém vai te dar atenção a menos que você tenha uma queixa formal.”

Eu não acredito que meu filho deva ir para a cadeia. Mas parece que os Estado Unidos estão usando as prisões como uma solução opcional para doentes mentais. De acordo com entidades de Direitos Humanos, o número de internos mentalmente doentes quadruplicou entre 2000 e 2006, e continua aumentando — na verdade a proporção de doentes mentais entre prisioneiros é cinco vezes maior que entre a população não encarcerada.

Ninguém quer mandar o gênio de 13 anos que ama Harry Potter e seu bichinho de pelúcia para a cadeia. Mas nossa sociedade, com o estigma que as doenças mentais provocaram o declínio do sistema público de saúde, não nos dá outra opção.

Aí então outra alma torturada atira em um restaurante. Um shopping. Uma classe de primeira série. E nós cerramos nossas mãos e dizemos: “Algo tem que ser feito”.

Eu concordo que algo tem que ser feito. É hora de uma significativa e abrangente discussão nacional a respeito da saúde mental. É o único jeito de realmente curarmos o país.

Deus me ajude. Deus ajude Michael. Deus ajude nós todos.

* * *


E vale ler as reflexões da Nanda, no Blog Mamíferas, a partir do massacre de Newtown e do filme Precisamos falar sobre Kevin, aqui:

(...) Em casos de atiradores adolescentes, até onde a culpa é dos pais? Porque precisamos culpar outras pessoas que não os atiradores? Não estou isentando o papel (ou ausência) dos pais na formação desses indivíduos, que em poucas instâncias sobrevivem para a realização de testes que comprovem sua psicopatia ou outras doenças mentais, mas será que está em nosso poder impedir que nossos filhos queimem mendigos, ou atropelem ciclistas, ou atirem em crianças na escola?

O medo do meu filho ser vítima é o mesmo medo de que ele seja o criminoso. Mas a culpa não é da mãe.

22 de dez. de 2012

O fim do (meu) mundo


Do psicanalista Mario Corso, em seu blog (aqui):

Se você está lendo estas linhas é por que o fim do mundo, previsto para hoje, não aconteceu. Confesso uma ponta de decepção, o fim, ou ao menos uma catástrofe, engrandeceria o homem, nos restituiria a condição de protagonistas num universo indiferente ao nosso destino. O cosmos foi mais uma vez indiferente aos rogos dos humanos e às suas previsões, o universo e o planeta continuam na sua imperturbável mecânica celeste, independente e ignorantes das nossas malfadadas conjecturas.

Diga-se, em favor dos Maias, os pretensos profetas do apocalipse em questão, que isso não foi uma ideia deles, e sim uma leitura apressada nossa, a partir de informações incompletas sobre sua cultura e calendário. Se não foi dessa vez, não se preocupe, cedo ou tarde vão anunciar outro fim, e de novo vamos vacilar se acreditamos ou não. A temática apocalíptica é uma velha conhecida e parece que não sai de cartaz. Não faz muitos anos, em 2000, era o mesmo temor, o mundo iria acabar, e cá estamos nós, lampeiros como sempre.

Inútil reclamar da imbecilidade, invocar racionalidades de todas matizes, acusar os crentes apocalípticos de passar atestado de ignorância científica. Até procede, mas a questão é outra: esse temor tem raízes míticas, e esse sistema de crenças e medos não funciona com a lógica da razão. Quando se opera com o sistema mítico, a ciência e o bom senso não têm entrada. Qualquer sistema mitológico clássico, quando conseguimos captá-lo em sua forma mais articulada e completa, pensa o cosmos com os mesmos termos: o nascimento (ou renascimento), um período de auge glorioso, um declínio sofrido e, finalmente, a destruição com o retorno ao caos. Portanto, o apocalipse faz parte desse esquema, dessa visão do mundo. Quando se raciocina miticamente, mais dia menos dia, desemboca-se nesse vórtice.

A questão que muitos se colocam é: por que discursos assim, tão disparatados, ainda tem pregnância? Por que, contra todas as evidências possíveis, ainda há quem acredite nisso? Creio que a questão está mal posta, poderíamos pensar o contrário, por que não seria assim? Goste-se disso ou não, o tempo do mito não acabou. O avanço da ciência e seu método, se por um lado combate a religião, a superstição, a magia, deixa muitas questões sem respostas e é onde se abre a brecha para o retorno do pensamento mítico. Os homens podem viver com pouco, mas raramente abrem mão de um sentido para o mundo e para sua vida. Qual a razão da existência? Para onde vamos? De onde viemos? Se o futuro promete tanto, por que me tocou viver esta época tão menor? Que diferença fiz, farei, nada mudaria se eu jamais tivesse nascido?

A ciência explica o mundo, mas quanto aos anseios de sentido de que padecemos, fornece mais dúvidas do que certezas. São poucos que agüentam a vida segurando-se no pouco que ela nos dá e encaram o sem sentido da existência. Já o pensamento mítico é um gerador de sentidos, ele capta o horror humano ao vazio e o preenche de qualquer maneira, com o que estiver mais à mão. Melhor um universo de conto de fadas, com entidades benignas ou malignas nos controlando que o nada. Nosso narcisismo não suporta que não haja transcendência, que sejamos um acaso na imensidão cósmica, um mero macaco melhorado.

O erro mais banal, mais primário, em que nosso pensamento cai, e como cai, é o de confundir-se com o objeto a ser examinado. Se alguém acredita que estamos no fim dos tempos, é possível que ele tenha razão, algum fim se aproxima, mas é mais provável que seja o fim dele, ou o fim de um mundo que reconhece como seu. Todos constatamos a velocidade com que a história anda e atropela tudo: costumes, formas de pensar, de viver. São tantas as novidades que perdemos as referências. A revolução da semana passada está velha, a tecnologia de ontem virou sucata.

A sensação é que o ritmo vem se acelerando. O fato é que nos sentimos ultrapassados a cada dia e, se não estamos em constante adaptação, corremos o risco de não entender o mundo em que vivemos. Nesse constante recriar-se para o novo, alguns se cansam e se perdem pelo caminho, ou ainda, simplesmente desistem. São esses os que vivem o fim do seu mundo, afinal, os valores que lhe ensinaram na infância já não servem, a paisagem não é a mesma, os anseios são outros. Não fica claro que o mundo está acabando? Quando chega a notícia do fim dos tempos, apenas confirma algo que já sentimos.

Sinceramente não desgosto de ondas apocalípticas, me sinto mais humano, mais completo, reencontro minhas desativadas ramificações religiosas que por momentos entram em alerta. Uso para fazer um exercício, que sugiro a todos: perguntar-se qual parte nossa está morrendo? Qual dos horizontes em vias de desaparecimento vamos sentir falta?

O homem não tem uma inclinação nostálgica por vocação mórbida, nossa substância é fornecida pelo tempo em que vivermos, que nos fez ser o que nos tornamos, isso é tudo de que dispomos. É duro pensar que tantos seguirão sem nós, por um tempo indefinido. Parece injusto, jamais saberemos da história que está por vir. Pensar que seríamos o último capítulo nos deixaria no admirável papel de ponto final, protagonistas essenciais, o que infelizmente não somos. Uma velha e saudosa senhora que conheci sempre dizia: “o cemitério está lotado de insubstituíveis”. Somos todos datados. A questão é quando expira o prazo. Viveremos um apocalipse privado, esta é a única certeza.



un pueblo sin pernas, pero que camina


A todos nós do eixo Rio-São Paulo, que tão alheios permanecemos do que se passa no resto deste Brasil; a nós brasileiros, que tão alheios nos mantemos do resto da América Latina - como se não fôssemos daqui, como se não pertencêssemos - uma dica: este É o nosso mundo.

Vamos dibujando el camino. Aquí estamos de pie.

queremos todos secretamente que o mundo acabe?


Pena que o mundo não acabou. Seria tão mais simples: recomeçar do zero parece mais fácil do que transformar o que aí está. Ou não?

De artigo publicado originalmente na Scientific American, traduzido e republicado via Bule Voador (leia na íntegra aqui):

(...) Steven Schlozman, buscando tanto em sua experiência de psiquiatra infantil da Harvard Medical School quanto na de romancista (seu primeiro livro relata um apocalipse zumbi), acredita que é o cenário pós-apocalíptico o que mais fascinas as pessoas.

“Eu falo com as crianças que atendo e elas vêem isso como uma coisa boa. Elas dizem: 'a vida seria tão simples – eu atiraria em zumbis e não teria que ir à escola'", diz Schlozman. Tanto na literatura quanto na conversa com pacientes, Schlozman observou que as pessoas frequentemente romantizam o fim dos tempos. Elas se imaginam sobrevivendo, prosperando e voltando à natureza.

Schlozman recentemente teve uma experiência que assustadoramente ecoou a transmissão de 1938 de “Guerra dos Mundos” por Orson Welles. Ele estava discutindo sobre seu livro em um programa de rádio e tiveram que cortar o show, porque alguns ouvintes estavam entendendo sua ficção como fato. Ele acredita que a propensão ao pânico não foi constante na história e é na verdade reflexo dos nossos tempos. No mundo complicado de hoje, com terrorismo, guerras, abismos fiscais e mudanças climáticas, as pessoas estão predispostas ao pânico.

“Toda essa incerteza e todo esse medo se juntam e as pessoas começam a pensar que a vida seria melhor” depois de um desastre, Schlozman diz. É claro que, na verdade, a maioria de seus sonhos apocalípticos são só fantasias, que ignoram as dificuldades reais da vida pioneira sem nenhuma infra-estrutura. Ele destaca que, se há alguma coisa que histórias de apocalipse, particularmente envolvendo zumbis, deveriam idealmente ensinar a nós, seria algo sobre o mundo que deveríamos evitar – e como fazer mudanças necessárias agora mesmo para isso.

a bença!


"A bença, mãe! A bença, pai! A bença, vó!" E ia por aí a ladainha de saudação das crianças aos mais velhos no meu tempo de menino. Mesmo os adultos pediam a bênção aos pais, avós, padrinhos e madrinhas, que com sorridente alegria abençoavam os descendentes carnais e simbólicos. O pedido de bênção era o mais significativo ato litúrgico do que, então, apropriadamente, se chamava de laços de família. Já septuagenário, eu pedia a bênção à última pessoa de minha família a ter direito a esse tributo ritual: minha tia Sebastiana, quase centenária, quando a visitava no Pinhá, lá para os lados de Socorro. E isso fazia um bem enorme a ela e a mim. Dava-lhe, e dava-me, a certeza de que o abismo do tempo que nos separava - ela, quase do tempo da escravidão e do trabalho do eito, e eu, do tempo do computador - continuávamos unidos pelo mesmo afeto de quando eu era criança.

Para mim foi um susto quando, já bem adulto, pedi a bênção ao abençoado dom Antonio Fragoso, que mais de uma vez me acolheu em sua hospitaleira casa de Crateús, no Ceará, e ele, sorrindo, disse-me que eu já não precisava disso. "Que é isso, dom Fragoso? Se alguém precisa de bênção, sou eu!"

O costume da bênção parental se foi pelo ralo da secularização e da modernidade, nesta sociedade de seres tão cheios de certezas e de seguranças e tão inseguros em relação a tudo. As crianças já nascem na moldura educativa do super-homem. Num certo sentido, condenadas à privação da poesia que há nos prosaicos gestos rituais que em outros tempos diziam aos imaturos que estavam sob o abrigo do manto diáfano e invisível, mas eficaz, do acalanto de mãos protetoras estendidas sobre a cabeça.

A bênção entre nós é antiga e sagrada. Sua forma ritual varia segundo a região. No subúrbio, eu pedia a bênção a quem devia esse gesto de respeito, beijando-lhe a mão direita. Pedia "a bênção!", mas agarrava-lhe logo a mão, por sim ou por não, para assegurar-me a bênção carecida. Na roça, lá no Pinhalzinho, na Bragantina, meus primos pediam a bênção juntando as mãos em gesto de louvado em direção à pessoa que, esperavam, os abençoasse. "A bença!" rogavam. "Deus abençoe!" vinha a confirmação sacramental do parentesco que se renovava ao menos uma vez por dia. Ou duas! Pedia-se a bênção, também, na hora de dormir. No Arriá, havia quem, juntando as mãos, dissesse "São Cristo!" Tudo indica, fora o modo como os índios administrados, antecessores dos escravos negros, confirmavam cotidianamente a dimensão patriarcal de seu cativeiro.

Num povoado da Amazônia, em que estava fazendo pesquisa sobre violência fundiária, várias crianças vieram visitar-me no rancho em que armara minha rede para pedir-me "a bença", de mãos juntas. Da resposta, ficavam sabendo se eu era amigo ou inimigo, do bem ou do mal, de dentro ou de fora.

- José de Souza Martins, no Estadão, 17-12-12 (via)

perigosa intolerância


De Carlos Tufvesson, em O Globo, 16-12-12 (via):

Recentemente, em “Avenida Brasil” — brilhante novela de João Emanuel Carneiro — era possível acompanhar uma trama que unia dois homens e uma mulher, e outra que abordava o casamento entre um homem e três mulheres. Neste segundo caso, com direito a vestidos nas noivas e beijos enfileirados lado a lado. Esse fato não registrou o menor alvoroço na sociedade como causa a manifestação de afeto entre duas pessoas do mesmo sexo. Paradoxalmente, por algum critério de moralismo seletivo, o tal “beijo gay” ainda continua sendo um tabu.

Sou casado há 17 anos. Uma relação pública abençoada por toda nossa família. É importante ressaltar que casamento civil nada tem a ver com nenhuma cerimônia religiosa. A definição de casamento, segundo o Código Civil, art. 1511: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”

Por que, afinal, as pessoas querem se casar? Porque em nosso país cidadãos que se unem para dividir uma vida em comum só têm a ampla proteção, em direitos e deveres, se realizado o casamento civil, estabelecido no Código Civil. O ministro Luiz Felipe Salomão, do STJ, em decisão sobre casamento civil, declarou em seu voto: “Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os ‘arranjos’ familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.”

No último dia 6, a coluna de Ancelmo Gois noticiou que uma conversão de união estável em casamento entre duas pessoas do mesmo sexo na cidade fluminense de Sapucaia deve sofrer represália de um grupo religioso que promete uma passeata contra a união e já roda um abaixo-assinado para tentar anular a decisão. É muito perigoso esse nível de intolerância e interferência na vida de outros que tem acontecido no Brasil. Pessoas têm se unido para fazer com que as regras da sua religião sejam impostas à sociedade, mesmo aos que não comungam da sua fé.

Reconheço que não vejo a comunidade judaica organizar-se para impor suas regras e viabilizar um projeto de lei que proíba o consumo de carne de porco no país ou para que tenhamos de respeitar o shabat. Não vejo a comunidade muçulmana se organizar para criar uma lei onde todos têm de se ajoelhar para Meca ao meio-dia. Por que então algumas pessoas “em nome” de determinadas religiões tentam impor seu Deus e suas regras a toda uma sociedade? Não preciso ser negro para lutar contra o racismo. Não preciso ser judeu para lutar contra o antissemitismo. E você não precisa ser homossexual para lutar contra a homofobia.

E mais: Nem tudo são trevas. Católicos franceses defendem o casamento para todos (leia aqui).

21 de dez. de 2012

casamento para todos, um avanço humano


Em vez de se interrogar abstratamente sobre supostas desordens antropológicas de uma abertura do matrimônio aos homossexuais, não seria melhor colocar todos os nossos esforços sobre a desordem antropológica de uma sociedade cujas formas de consumo, de produção e de partilha são tão pouco respeitosas à pessoa humana e à sua dignidade?

Publicamos aqui a declaração da revista francesa Témoignage Chrétien, 14-12-2012, sobre a lei do casamento para todos. A tradução é de Moisés Sbardelotto, originalmente publicada no IHU.

Eis o texto.


A homossexualidade foi perseguida ou oprimida durante longos séculos. Na realidade, trata-se de uma orientação sexual tão legítima e digna quanto a heterossexualidade.

O matrimônio é um contrato escolhido por duas pessoas mais livres e conscientes hoje do que jamais o foi. É um contrato que pode ser rompido ou renovado legalmente. Há famílias que se fundamentam fora do casamento, e 40% das crianças nascem fora do casamento.

Rejeitar esse contrato aos homossexuais seria acrescentaria uma enésima discriminação àquelas dos quais eles já foram objeto muito frequentemente. É por isso que consideramos justo que ele seja aberto àqueles – homens e mulheres – que querem dar um quadro lícito mais forte para a sua união.

Caberá às religiões refletir sobre o sentido do casamento religioso, mas seria um grave erro político colocar um contra o outro. Lembremos, enfim, que as mesmas pessoas que se orgulham das virtudes da união civil hoje, depois de terem rejeitado o PaCS [Pacto Civil de Solidariedade], muitas vezes com as mesmas palavras, são os primeiros responsáveis por uma radicalidade gerada pelo seu fechamento às liberdades individuais. Esperamos que a lição sirva.

Não acreditamos que o casamento para todos irá dissolver a sociedade. O divórcio não fez com que o casamento desaparecesse. Um número muito grande de divorciados se casa novamente. Se o casamento para todos é um modo de integração suplementar na sociedade, então não é preciso hesitar.

Consideramos que o projeto de lei atual constitui um avanço real. Distinguimos a conjugalidade, a parentalidade e a filiação. O direito de toda criança de conhecer as suas origens e a sua filiação é um direito essencial, exceto pela impossibilidade ou no caso de força maior de natureza patológica.

Enfim, pedimos a todos que abram os olhos para uma realidade que é a solidão de milhões de pessoas, em situação de indigência material, afetiva e psicológica às vezes terrível. Em vez de se interrogar abstratamente sobre supostas desordens antropológicas de uma abertura do matrimônio a uma parte necessariamente reduzida da população, não seria melhor colocar todos os nossos esforços sobre a desordem antropológica, bem real desta vez, de uma sociedade cujas formas de consumo, de produção e de partilha são tão pouco respeitosas à pessoa humana e à sua dignidade?

A humanidade cresce quando os cidadãos se recusam a sacralizar os laços de sangue e dão a precedência aos laços de fraternidade que os unem. Assim, o que os une, mesmo dentro da família, procede da adoção. Cristo na cruz dizia a João: "João, eis aí a tua mãe", e à sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho". Não é a paternidade biológica, não são os laços de sangue que nos tornam irmãos e irmãs. O nosso DNA único e comum é um amor fraterno que desloca as fronteiras dos nossos preconceitos e dos nossos medos para mais longe.

muito barulho para pouco exemplo


De Rosely Sayão, em sua coluna desta semana (18-12) na Folha de S. Paulo:

As redes sociais podem ser muito eficientes como desencadeadoras de movimentos sociais e difusoras de informações que alguns grupos consideram importantes.

Claro que as mesmas redes podem ser muito chatas. Pessoas conhecidas têm me perguntado por que utilizo uma dessas redes em que chovem pedidos para participar de jogos e/ou comentários grosseiros e agressivos.

Pelo jeito tenho tido sorte, pelo menos até agora. Claro que um ou outro convite para jogos sempre chega, assim como alguns comentários desagradáveis ou violentos. Mas, de modo geral, as pessoas conectadas à minha rede estão mais interessadas em assuntos que consideram relevantes e são civilizadas.

E foi assim, por participar dessa rede virtual, que na última semana recebi dois alertas bem interessantes que, coincidentemente, chegaram no mesmo dia. Um deles reproduziu uma reportagem publicada em um jornal de Boa Vista (RR) a respeito de um acontecimento que pareceu inusitado à população.

A mãe de uma adolescente que estuda em uma escola estadual decidiu, depois de saber que a filha havia feito uma pichação no muro da escola, que a garota deveria pintar o muro que sujara.

Na reportagem, a mãe da aluna deu um depoimento sensacional para justificar sua decisão: "A escola é nossa, por isso temos que cuidar bem dela".

O outro alerta que recebi também diz respeito à relação escola-comunidade. Nesse caso, foi uma decisão judicial proibindo crianças de uma escola de educação infantil em Porto Alegre (RS) de realizar atividades externas por causa do barulho, que atrapalha os vizinhos. O fato motivou várias reportagens locais com alguma repercussão nacional.

Adolescentes e crianças têm depredado o patrimônio escolar? Sim, têm. Crianças e adolescentes têm produzido muito barulho no espaço escolar? Têm, sim. Mas o que proponho como reflexão hoje é a maneira como a sociedade tem reagido a esses acontecimentos que envolvem os mais novos.

Visitei páginas da internet que publicaram as duas notícias. Em todas, encontrei comentários grosseiros contra crianças e adolescentes.

Fiquei pensando que, se considerarmos tais comentários, fabricaremos a imagem de que o mundo adulto é uma maravilha: silencioso, polido, civilizado etc. Sabemos que isso não é verdade.

Somos nós, com nosso comportamento ruidoso e nossa displicência em relação ao espaço público, que temos ensinado aos mais novos o mesmo comportamento. Só que, quando são crianças ou adolescentes os envolvidos na história, há pouca tolerância e muito moralismo.

Os mais novos podem aprender a brincar e a realizar trabalhos escolares com menos ruído. Mas, para que isso aconteça, precisam da regulação dos adultos com quem estejam no momento.

Jovens que depredam o espaço público também podem aprender a respeitar o lugar que frequentam se puderem entender que esse lugar é de todos. Mas temos renunciado ao espaço público por entender que, em vez desse ambiente pertencer a todos, não pertence a ninguém.

Os mais novos podem ser muito melhores do que nós, adultos. Para isso, precisam apenas de nossa generosidade, dedicação e de nosso compromisso com a educação deles. Crianças e adolescentes precisam de nós.

Restringir o espaço de circulação deles não irá ensiná-los a falar mais baixo, a fazer menos barulho, a saber conviver com respeito. Fazer com que recuperem o espaço de todos que prejudicaram pode ter efeito educativo. Qual caminho iremos escolher?

eu preciso lhe dizer

debaixo da aparente estupidez, existe a estupidez verdadeira


De Eduardo Galeano, aqui (via Lair Amaro):

A tevê dispara imagens que reproduzem o sistema e as vozes que lhe fazem eco; e não há canto do mundo que ela não alcance. O planeta inteiro é um vasto subúrbio de Dallas. Nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata, enquanto os jovens filhos da televisão, treinados para contemplar a vida em vez de fazê-la, sacodem os ombros.

Na América Latina, a liberdade de expressão consiste no direito ao resmungo em algum rádio ou em jornais de escassa circulação. Os livros não precisam ser proibidos pela polícia: os preços já os proíbem.

Leia na íntegra aqui, por favor. Depois, dê uma olhada nisto.

satisfação das necessidades fundamentais?


De Leonardo Boff, no Adital:

O ser humano é, por natureza, um ser de muitas carências. Precisa de grande empenho para atendê-las e assim poder viver, não miseravelmente, mas com qualidade. Atrás de cada necessidade, se esconde um desejo e um temor: desejo de poder satisfazê-la de forma a mais satisfatória possível e o temor de não consegui-lo e aí sofrer. Quem tem, teme perder: quem não tem, deseja ter. Assim é a dialética da existência.

Mestres das mais diferentes tradições da humanidade e das ciências do humano convergem mais ou menos nas seguintes necessidades fundamentais:

Temos necessidades biológicas: numa palavra, precisamos comer, beber, morar, nos vestir e ter segurança. Grandeparte do tempo é empenhado em atender a tais necessidades. As grandes maiorias da humanidade as satisfazem de forma precária ou por falta de trabalho ou porque a solidariedade e a compaixão são bens escassos. A primeira petição do Pai-Nosso, é pelo pão cotidiano porque a fome não pode esperar.

Mas não pedimos a Deus que cada dia faça milagres e assim nos dispense de produzir o pão. Pedimos que os climas e a fertilidade dos solos sejam favoráveis e que haja a cooperação na produção e distribuição dos alimentos. Só então exorcizamos o medo e atendemos o nosso desejo básico.

Temos além disso, necessidade de segurança: podemos adoecer e sucumbir a riscos que nos tiram a vida. Podem provir da natureza, das tempestades, dos raios, das secas prolongadas, dos deslizamentos de terra, de todo tipo de acidentes. Podem provir, principalmente, do próprio ser humano que não só tem dentro de si o instinto de vida mas também o instinto de morte; pode perder a autocontenção e eliminar o outro. Tudo isso nos produz medo. E temos esperança de contorná-lo. O fato de termos vivido nas cavernas e depois casas mostra nossa busca de segurança.

O fato é que nunca controlamos todos os fatores. Sempre podemos ser vítimas ou inocentes ou culpadas. E é então que gritamos por Deus, não para que nos tire da beira do abismo, mas que nos dê coragem para evitá-lo e sobreviver.

Temos, em terceiro lugar, necessidade de pertença: somos seres societários. Pertencemos a uma família, a uma etnia, a um determinado lugar, a um país, ao planeta Terra. O que torna penoso o sofrimento é a solidão, o não poder contar com um ombro amigo e uma mão acolhedora. Como somos frutos do cuidado da nossas mães que nos seguraram nos braços, queremos morrer segurando a mão de alguém próximo ou de quem nos ama.

Na fundo do abismo existencial clamamos pela mãe ou por Deus. E sabemos que Ele nos atende porque é sensível a voz de seus filhos e filhas e sente o pulsar de nosso coração amedrontado. Ser reduzido à solidão é ser condenado ao inferno existencial e à ausência de qualquer comunhão. Por isso, importa garantir o sentimento de pertença, caso contrário nos sentimos como cães abandonados e vagantes no mundo.

Em quarto lugar, temos necessidade de autoestima. Não basta existirmos. Precisamos que nossa existência seja acolhida, que alguém por palavras e atos nos diga: "seja bem-vindo ao nosso meio, você conta para nós”. A rejeição nos faz ter, ainda vivos, a experiência de morte. Precisamos, pois, ser reconhecidos como pessoas, nas nossas diferenças e singularidades. Caso contrário, somos como uma planta sem nutrientes que vai mirrando até morrer. E como é importante quando alguém nos chama pelo nome e nos abraça. Nossa humanidade negada nos é devolvida e podemos seguir com esperança e sem medo.

Por fim, temos necessidade de autorrealização. Esse é o grande anseio e desafio do ser humano: de poder realizar-se a si mesmo e de tornar-se humano. Que é o humano do ser humano? Não sabemos exatamente, porque até o inumano pertence ao humano. Somos um mistério para nós mesmos. Não é que nada sabemos do humano. Ao contrário, quanto mais sabemos, mais se alargam as dimensões daquilo que não sabemos. Temos saudades das estrelas de onde viemos.

Mas sabemos o suficiente para descobrirmo-nos seres de abertura, ao outro, ao mundo e ao Todo. Somos seres de desejo ilimitado. Por mais que busquemos o objeto que sacie nosso desejo, não o encontramos entre os seres à nossa volta. Desejamos o Ser essencial e topamos apenas com entes acidentais. Como, então, conseguiremos a nossa autorrealização se nos percebemos como um projeto infinito?

É nesse afã que ganha sentido falar de Deus como o Ser essencial e o obscuro objeto de nosso desejo infinito. Só Ele preenche as características do Infinito, adequadas ao nosso projeto infinito. Autorrealizar-se, portanto, implica envolver-se com Deus. Envolver-se com Deus é despertar a espiritualidade em nós, aquela capacidade de sentir uma Energia poderosa e amorosa que perpassa toda a realidade. É poder ver na onda, o mar e na gota d’água, a imensidão do Amazonas. Espiritualidade é sentir a fome e a sede de um derradeiro aconchego onde, em fim, todas nossas necessidades serão satisfeitas, onde morrem todos os temores e descansaremos.

Enquanto não elaborarmos em nós esse Centro, sentimo-nos sempre na pré-história de nós mesmos: seres inteiros mas inacabados e, no termo, frustrados.

Ao entrarmos em comunhão com o Ser essencial pela entrega silenciosa e incondicional, pela oração e pela meditação, abrimos um manancial de energias incomparável e insubstituível. O efeito é a pura alegria, a leveza da vida, a bem-aventurança possível aos caminhantes.

20 de dez. de 2012

fé e saber


De Vladimir Safatle, em sua coluna desta semana (18-12) na Folha de S. Paulo:

Na semana passada, escrevi artigo criticando colocações de dom Odilo Pedro Scherer a respeito da submissão de uma universidade confessional ao quadro dos ditos valores católicos, com seus dogmas e preconceitos.

Insisti que uma universidade não é simplesmente uma propriedade privada, mas uma autorização do Estado.

É o Estado brasileiro que legitima o diploma dado por toda e qualquer universidade. Nada mais normal, então, que elas sigam injunções que o Estado democrático compreende como fundamentais para uma formação universitária adequada, como o respeito ao livre pensamento e ao desenvolvimento do senso crítico.

Note-se que, em momento algum, disse que valores religiosos não devem ser objetos de debate e conhecimento no interior de uma universidade.

Na verdade, disse que uma universidade não pode sub-meter sua liberdade de pesquisa e de crítica a conjunto algum de valores religiosos, muito menos de interesses ligados ao mercado ou a interesses do próprio Estado.

Nossos alunos devem conhecer valores religiosos, já que eles são elementos maiores para a formação da cultura e da experiência do pensamento. Não entenderemos como pensamos o tempo, a identidade, a relação com o corpo, o poder, o outro, assim como não entenderemos os limites e potencialidades de nossas formas de pensar, sem passarmos pelo impacto que discussões teológicas tiveram no pensamento.

No entanto nossos alunos têm a necessidade de conhecer bem valores de todas as religiões, e não apenas de uma específica, com suas leituras peculiares.

Por exemplo, se nossos alunos, desde o ensino médio, conhecessem as discussões teológicas muçulmanas talvez tivéssemos menos absurdos circulando, quando é questão de tentar compreender as sociedades árabes. O mesmo vale para a tradição judaica. Talvez entenderíamos melhor aqueles que queremos, custe o que custar, colocar sob a rubrica de atrasados e irracionais.

Mas, para tanto, não precisamos de cursos de teologia ou de formação religiosa. Precisamos de cursos de história das religiões e de seus sistemas de pensamento.

Não é verdade que fé e saber andam juntos. Mais de 400 anos para que a igreja perdoasse Galileu deveria servir, ao menos, para alguns terem mais humildade quando falam sobre tal relação.

No entanto é verdade que o saber reconhece como há algo na fé que demonstra como ele começou, de onde ele veio e quais são seus pontos de quebra. Por isso, um conhecimento sobre a história das religiões é uma aquisição fundamental para toda formação crítica.

estamos todos no mesmo barco


"Você tem de criar sua própria identidade. Você não a herda. Não apenas você precisa fazer isso a partir do zero, mas você tem de passar a sua vida, de fato, redefinindo a sua identidade. (...)

Nós, a humanidade no planeta, multiplicamos as conexões, as relações, as interdependências, as comunicações espalhadas por todo o mundo. Estamos agora em uma posição em que todos nós dependemos uns dos outros."

- Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, em entrevista concedida por ocasião do Fronteiras do Pensamento com Edgar Morin.

trabalho escravo, quando acaba?


De Frei Betto, no Adital:

Em janeiro de 2004, três auditores fiscais do trabalho e um motorista foram assassinados em Unaí (MG) ao investigarem trabalho escravo em uma lavoura de feijão. Em janeiro próximo se completam 9 anos de impunidade. Até agora ninguém foi condenado pela chacina que tirou as vidas dos auditores Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage, Nelson José da Silva, e do motorista Ailton Pereira da Silva.

O Brasil possui uma eficiente fiscalização do trabalho degradante. O Grupo Móvel atua desde 1995 e, a partir de 2003, já libertou mais de 35 mil trabalhadores, segundo dados da CPT (Comissão Pastoral da Terra).

Há obstáculos permanentes a enfrentar, como aponta meu confrade Xavier Plassat (Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2008), como a burocracia que atrasa a apuração de denúncias; dificuldades operacionais para agilizar a Polícia Federal, que atua como polícia judiciária; resistência de algumas superintendências regionais a fiscalizações efetivas.

A fiscalização, entretanto, tem melhorado. Apenas 1/3 das denúncias continua sem investigação. Isso não significa que libertar trabalhadores faz cessar a escravidão. Ela deita raízes profundas no solo brasileiro: tivemos o mais longo período de escravidão nas Américas, 358 anos (1530-1888) e, hoje, a ganância, a miséria e a impunidade favorecem esse crime hediondo.

A escravidão não ocorre apenas em áreas rurais. Expande-se aos grandes centros urbanos, como em confecções de São Paulo, que exploram a mão de obra de imigrantes bolivianos e asiáticos.

Em 2010, 242 pessoas foram libertadas de situações análogas à escravidão em atividades não agrícolas, como construção civil (175 em obras do PAC!). Na zona rural, 2/3 dos casos, entre 2003 e 2010, ocorreram na pecuária (desmatamento, abertura e manutenção do pasto); 17% em lavouras de cana de açúcar, soja, algodão, milho, café, e reflorestamento; e 10% em carvoarias a serviço de siderurgias.

A maioria dos libertados trabalhava na pecuária e no corte de cana, sobretudo na região amazônica, principalmente nos estado do Pará, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso, onde se destaca a voz profética do bispo Dom Pedro Casaldáliga, ainda hoje, aos 84 anos, ameaçado de morte por defender os oprimidos (Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2012).

Por que trabalho escravo em pleno século XXI? O lucro! E quando flagrado, o proprietário finge não saber o que ocorria em suas terras e culpa o capataz. Fazendeiros, parlamentares, magistrados, artistas de TV, figuram entre proprietários rurais que adotam trabalho braçal de baixo custo em condições subumanas – o trabalho escravo.

Daí a dificuldade de a Câmara dos Deputados aprovar, após espera de 8 anos, a emenda constitucional que propõe cancelar a propriedade da terra de quem adota mão de obra escrava. Felizmente, a PEC 438 foi aprovada em maio deste ano e, agora, aguarda aprovação do Senado.

Hoje, o proprietário rural não é mais dono do servo, nem responsável por sua manutenção e reprodução de sua prole, como acontecia no Brasil colonial. Ele usa e abusa da mão de obra escrava, arregimentada sob promessas enganosas, e a descarta três ou quatro meses depois. Carvoeiros, roçadores de pasto e cortadores de cana têm, em pleno século XXI, expectativa de vida inferior aos escravos do século XIX.

O trabalho escravo está presente nas principais cadeias produtivas do agronegócio brasileiro: carne e madeira (metade das denúncias); cana e demais lavouras (metade dos libertados), e carvão vegetal.

Há uma estreita vinculação entre expansão do agronegócio no contexto da economia globocolonizada e a precarização das relações trabalhistas. Eis a contradição, alerta frei Xavier Plassat: o mesmo governo que estimula as monoculturas de exportação corre atrás dos enormes prejuízos que ela provoca, inclusive à imagem do Brasil no exterior.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) calcula que, atualmente, haja no mundo de 12 a 27 milhões de trabalhadores escravos. No Brasil, estima-se em 25 mil o número de pessoas submetidas a condições degradantes de trabalho, inclusive crianças.

É hora de as centrais sindicais descruzarem os braços quanto a essa nódoa do cenário brasileiro.

E mais: "Por que a Lei Áurea não representou a abolição definitiva?", por Leonardo Sakamoto, aqui

o menino velho


Desde pequeno, ele era assim. Gostava de coisas antigas, guardava, dentro de caixas e pastas, recortes de jornais sobre os mais diversos assuntos, com a sensação de que um dia precisaria pesquisar as informações ali armazenadas. Tinha também especial prazer em observar o comportamento dos mais velhos, dos muito velhos. Quando estava com 8, 9 anos, costumava sentar-se à porta da loja de seu pai e ali ficava, horas e horas, conversando com os fregueses que apareciam, todos homens feitos. Mas seu interesse maior recaía sobre um amigo do pai, de longa data, um senhor de 80 anos a quem chamava de avô. Dele, ouvia histórias sobre o Rio Antigo, sobre os fascínios e as malandragens da Lapa clássica, as festas nos salões e nas gafieiras, os primeiros banhos de mar nas praias quase desertas de Copacabana e Ipanema.

Adolescente, começou a colecionar objetos. Livros, discos, fotografias, folhetos. Tinha um faro instintivo para o valor das coisas antigas, um respeito visceral pelas lembranças do passado – sem que jamais tivesse sido ensinado a agir assim. Colecionava coisas antigas como se fossem brinquedos.

Adulto, tornou-se um pesquisador. Era capaz de ficar horas e horas dentro de uma biblioteca, um sebo ou um museu, ou mesmo passeando pelas ruas de casario antigo, no Centro da cidade, onde até o arredondado das pedras do calçamento o deixava comovido, por saber que por ali haviam pisado milhões de pés que não existiam mais. Assim como acontecera quando era criança, seus melhores amigos eram homens mais velhos, com quem conversava de igual para igual, com os quais trocava experiências e idéias. E a quem ajudava, sempre que podia. Tinha um respeito enorme por aquelas pessoas que a sociedade parecia desprezar. Os velhos eram, para ele, a personificação da memória cultural e estética do homem. Deviam ser cultuados – nunca esquecidos.

E assim os anos se passaram. Até que ele próprio começou a envelhecer. Mas apenas externamente. Por paradoxal que fosse, sua convivência – pela vida inteira – com coisas e pessoas do passado parecia deixá-lo cada vez mais jovial, vivo e iluminado.

Um dia, viu numa fotografia uma placa, na porta do quarto de Frank Sinatra (já velho), que dizia: “Aquele que morrer com mais brinquedos, ganha”. E mandou fazer uma igual. No dia em que completou 60 anos, deu uma festa para a inauguração da placa. E chamou todos os seus amigos – os velhinhos loucos, meio desajustados, meio decadentes, os colecionadores de quinquilharias de toda espécie com quem se dava. Foi um acontecimento. E naquela noite ele dormiu satisfeito. Com a doce sensação de que podia até estar ficando velho, sim – mas que continuaria a ser um menino. Eternamente.

- Heloísa Seixas, 07-04-02 (obrigada ao amigo Marcelo Maldonado)

19 de dez. de 2012

a família, segundo victor hugo


É longo, mas vale a leitura com calma. Publicado no CLAM e reproduzido via Diversidade Católica.

“O que assistimos hoje não é uma revolução que conduziria ao desaparecimento da família, mas a uma evolução que, ao contrário, a pereniza: o desejo dos homossexuais de entrar na ordem procriativa, ou seja, na ordem familiar da qual haviam sido excluídos”. Intervenção de Elisabeth Roudinesco na Assembleia Nacional da França, a propósito do projeto de lei Casamento para todos, em debate no país.

A sociedade francesa debate no momento o projeto de lei do Executivo que autoriza o casamento entre pessoas do mesmo sexo e permite que homossexuais possam participar de programas de adoção. Em recente editorial, o jornal conservador Le Figaro afirmou que essa reforma do código civil vai transformar a estrutura familiar tal qual ela existe na França, "A noção de pai e mãe vai desaparecer do Código Civil e comprometer o futuro de milhares de crianças”, afirma o texto.

Assim como acontece no Brasil e em outras culturas, a proposta, ao colocar em jogo a noção de família, tem gerado grande ebulição – na França inclui até mesmo a realização de passeatas em Paris e em várias outras cidades, organizadas por setores conservadores.

Por compartilharmos as mesmas idéias a respeito de temas como “família” (e sua definição no plano antropológico, fundada não somente na diferença biológica de sexo, ou na presença obrigatória de um homem e de uma mulher, ou de um pai e de uma mãe) e o direito de casais homoafetivos de fundar uma família – e, portanto, se beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de pessoas de sexos diferentes – reproduzimos abaixo o pronunciamento da historiadora da psicanálise e psicanalista Elisabeth Roudinesco na Comissão de leis sobre o casamento para todos, na Assembleia Nacional da França no dia 15 de novembro, a qual consultou os psicanalistas a propósito do projeto de lei a ser votado em 2013. Em sua intervenção, Roudinesco recorre a Victor Hugo – em Os Miseráveis – para falar aos parlamentares presentes do real significado de “parentalidade”. Texto traduzido por C. Lucia M. Valladares de Oliveira:



Excelentíssimo Sr. presidente da Comissão de leis, Sr. Relator, senhoras e senhores parlamentares,

Gostaria de agradecer a honra que me outorgaram, convidando-me para esta sessão sobre um tema ao qual já dediquei muitos estudos enquanto historiadora sobre a família, sexualidade, psicanalise e psiquiatria. Permito-me também falar aqui como “testemunho”, posto que minha mãe, Jenny Aubry, pediatra, médica e psicanalista durante toda a sua vida tratou de crianças em sofrimento: crianças abandonadas, em orfanato, maltratadas, crianças doentes, crianças superdotadas, crianças aguardando adoção e filiação.

Sou favorável a essa lei e como muitos de meus colegas sociólogos, antropólogos e historiadores que os senhores já ouviram – penso em particular como Irene Théry – fiquei surpresa com a violência com a qual, novamente, os homossexuais foram estigmatizados em seu desejo de fundar uma família e, portanto, de beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de pessoas de sexo diferente.

É possível compreender que os religiosos sejam contrários a esta mutação da questão do casamento, considerando que eles possuem uma visão imutável e essencialista da família, através da qual o pai permanece como o substituto de Deus e a diferença bio-anatômica dos sexos fundamenta todo o direito natural. Mas da parte de especialistas do tratamento psíquico que atendem famílias perturbadas, tal oposição me parece incompreensível, em particular quando eles se reivindicam daquilo que foi e é, na história da psicanálise, a concepção freudiana da família.

Em momento algum se encontrará na obra do fundador da psicanálise o que uma parte de seus herdeiros pretende detectar atualmente: o casamento homossexual seria o fim da família, seria uma denegação da diferença de sexos, uma desgraça para as crianças, condenadas a ter pais perversos, condenadas a ficar sem filiação, sem lei do pai separador, etc. Não somente Freud não considerava os homossexuais como seres não humanos, como, em seu tempo, manifestou claramente sua vontade de despenalizar esta forma de sexualidade. Não somente nem por um instante passou pela cabeça dele que a família pudesse se sustentar no primado da diferença biológica dos sexos – uma vez que esta é uma evidência e não uma construção – como aceitou que sua filha Anna criasse os filhos de sua companheira e considerou que se tratava ali de uma família: estas são as palavras dele. Portanto, não façamos Freud dizer o que ele nunca disse, exceto ao mergulhar em um anacronismo que todo historiador tem obrigação de criticar.

Na realidade, o que assistimos hoje não é uma revolução que conduziria ao desaparecimento da família, mas a uma evolução que, ao contrário, a pereniza: o desejo dos homossexuais de entrar na ordem procriativa, ou seja, na ordem familiar da qual haviam sido excluídos. Este desejo de normatividade que se observa há cerca de trinta anos é a consequência da despenalização da homossexualidade nas sociedades democráticas, mas também dessa hecatombe que foi a AIDS. Querer se reproduzir estando inscrito na ordem familiar é também um desejo de vida, de transmissão. E é esta aspiração à normatividade que incomoda os oponentes à lei porque no fundo, ainda que não homofóbicos, eles gostariam de manter hoje em dia a imagem do homossexual maldito encarnado por Proust ou Oscar Wilde: na visão deles o homossexual deve permanecer clinicamente perverso, ou seja, fora da ordem procriativa.

A abundância de culturas é, no entanto, suficientemente extensa para permitir uma infinita variedade de modalidades de organização familiar. De outra forma dita, deve-se admitir que, durante séculos manifestaram-se no interior de duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outras interdições), não somente transformações próprias à instituição familiar, como também modificações do olhar dirigido para ela ao longo de gerações. Uma vez admitida esta definição, cabe retomar a questão histórica. Fundada por muitos séculos na soberania divina do pai, a família ocidental se transformou em uma família biológica a partir do início do século XIX com o advento da burguesia que atribuía à maternidade um lugar central. A nova ordem familiar pôde então controlar o perigo que representava o lugar do feminino, ao preço do questionamento do antigo poder patriarcal. Do seu declínio, do qual Freud tornou-se testemunha e principal teórico, emergiu um processo de emancipação que permitiu às mulheres afirmar sua diferença – especialmente ao separar maternidade de desejo e procriação, e ao querer ter acesso ao trabalho –, tomar as crianças como sujeitos e não como imitações de adultos e aos homossexuais de se normalizar e de não mais ser considerados perversos. Esse movimento gerou angústia e desordem específicas, ligadas ao terror da abolição da diferença de sexos, com, no final do percurso, a perspectiva de uma dissolução da família. No final do século XIX, de fato temia-se que as mulheres, ao trabalhar, se tornassem homens e que a diferença de sexos fosse abolida. E hoje em dia, tem-se medo dessa mesma abolição que, nos dizem, viria dos homossexuais que também desejam fundar famílias.

Mas o que funda a família no plano antropológico não é somente a diferença biológica de sexos – o que aliás não envolve necessariamente a existência de um pai real e de uma mãe real, mas ambos de substitutos. É antes e, sobretudo, a proibição do incesto e a necessidade de troca: faz-se necessário as famílias para que a família exista e faz-se necessário a proibição para assegurar aquilo que nos diferencia do mundo animal: a passagem da natureza à cultura. E que eu saiba nunca os homossexuais criando filhos renunciaram a essa necessidade. E foi mais sobre essa questão que sobre a da diferença biológica que Freud aderiu em sua época às transformações da família ao aproximar as neuroses burguesas das tragédias antigas, ou seja, à interrogação de cada sujeito sobre sua origem: quem eu sou, de onde venho? Tal é a questão de Édipo de Sófocles. De que sou culpado? Tal é a questão de Hamlet, os dois heróis preferidos de Freud que de forma alguma criou uma psicologia familiarista. Quanto ao casamento, instituição especificamente humana e desde então laica, ele é a tradução jurídica, legal, de certo estado da família em uma época dada. Em nada imutável e sempre evoluindo, sempre em mutação como mostram também as revisões que o Código Civil sofreu desde a sua instauração na França em 1792. Em todos os lugares, nas sociedades democráticas, a instituição do casamento está em evolução como a família...

Para concluir, gostaria de dizer que o que destrói a família não é o desejo dos homossexuais de integrar a ordem familiar. Nunca é o desejo de fundar família, mas a miséria psíquica, material, moral, esta que vemos hoje e que conduz a derivas assassinas, ao terrorismo, ao sectarismo religioso. Miséria distinta de destinos trágicos próprios às dinastias reais que se destroem de dentro.

Victor Hugo enunciou em Os Miseráveis, livro que todos deveriam ler hoje nestes tempos de crise econômica e crise moral: o pai desempregado e explorado, a mãe escravizada, a criança vagabunda. Mas, sobretudo, gostaria de assinalar que esse mesmo Hugo, que ao longo de sua existência aderiu a todas as formas de parentalidade próprias à sua época – casamento por amor, adultério, pai, patriarca, avô, pai infeliz diante da loucura de uma filha e a morte de outra, pai amante do amor – forjou, através de Jean Valjean, um personagem célebre sobre o qual deveriam refletir todos aqueles que na essência argumentam que o bem-estar da criança exige a presença absolutamente necessária de um homem e uma mulher, de um pai e de uma mãe.

Resgatado da miséria, habitado pelo desejo do mal durante os dezenove anos que passou na prisão, e depois convertido por um religioso à vontade de fazer o bem, Valjean nunca tinha conhecido, aos 55 anos de idade, a menor relação carnal ou amorosa. Virgem, ele nunca tinha amado nem pai, nem mãe, nem amante, nem mulher, nem amigo.

Quando descobre através de Fantine, ex-prostituta, a existência de Cosette – criança mártir, humilhada pelos Thénardier –, ele vai procurá-la e torna-se seu pai, sua mãe, seu educador, seu tutor, enfim, o substituto de tudo que falta à criança sem amor: um único substituto que basta para assegurar então a felicidade futura da criança mais miserável da terra. Nove meses: o tempo de uma gestação. O coração do condenado, diz Hugo, está “repleto de virgindades” e, ao ver Cosette, ele sente pela primeira vez “um êxtase amoroso que vai ao desvario”. Imediatamente sentiu as fisgadas, ou seja, as dores do parto: “Como uma mãe, e sem saber do que se trata.” Literalmente, portanto, ele dá a luz a uma criança e o amor que ele sente é materno. Por sua vez, a criança, tendo esquecido o rosto de sua mãe, só tendo conhecido socos, só tendo amado uma vez na vida, não um humano, mas um animal – um cachorro – olha para esse homem que ela vai chamar de pai sem saber quem ele é e sem nunca saber seu verdadeiro nome. Ela vai amá-lo além de qualquer conhecimento da diferença entre uma mãe e um pai, como um santo, desprovido de sexualidade.

Atualmente, diante de pedopsiquiatras “especialistas”, assombrados pelo espectro da abolição da diferença de sexos, Valjean seria sem duvida visto como um pai mau ou uma mãe má, ou pior ainda, como um pedófilo.

Então, eu diria a todos aqueles que, em nome de uma impossível normalidade, fustigam as famílias monoparentais, homoparentais, “anormais”, divorciadas, que cada criança amaria tanto ter por mãe e pai a cada vez um Jean Valjean.

literatura, mística e gênero: clarice lispector


Clarice Lispector é um mistério em si mesma. Para além de sua pertença religiosa, trata-se de uma mulher de fé, de cuja pena jorra a palavra Deus diretamente nomeado e deixando perceber uma sensibilidade espiritual imensa para qualquer manifestação da Transcendência que possa acontecer em todas as dimensões da existência.

Apresentando quase sempre personagens femininas que buscam ardentemente sua identidade e que muitas vezes monologam, Clarice narra em seus romances verdadeiras experiências místicas. Suas personagens não recuam diante de nada na ânsia de chegar ao mais profundo de sua condição humana e à comunhão com o outro.

Na peregrinação ao fundo de si e ao encontro do outro, o silêncio é muito valorizado e sublinhado. Como, por exemplo, nesta passagem da obra Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres: “ O que se passara no pensamento de Lóri naquela madrugada era tão indizível e intransmissível como a voz de um ser humano calado. Só o silêncio da montanha lhe era equivalente.” Silêncio que deve ser vivido e sofrido: “O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras.“ O silêncio é o caldo de cultura adequado para a “aprendizagem” de ser: “Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.”

Neste reconhecimento mora a pergunta que no fundo é a pergunta de todo ser humano: “ Ele é o Silêncio. Ele é o Deus? “E ainda, tocando os limites da alteridade do divino que se revela em meio ao silêncio: “O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas. Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão.“

A palavra “submissão” traz a conotação mística da experiência que Clarice narra. A personagem Lori vai aprendendo e esperando para viver plenamente o amor de um homem, onde Eros é um componente essencial. Mas deverá compreender que não rege o processo. Outro tem nas mãos as rédeas do comando. Outro a quem ela não pode senão submeter-se na nudez ardente e dolorosa da noite escura que atravessa. Nesta aprendizagem feita de palavra e silêncio, de dor e alegria, de solidão e encontro, as personagens de Clarice vão experimentar a comunhão do amor pleno e maduro, feito de Eros e ágape.

E descobrem que “a palavra de Deus era de tal mudez completa que aquele silêncio era Ele próprio.” Descobrem igualmente que o caminho do autoconhecimento é angustiante, porém salvador. Tira o Ser do estado de ruína e de esquecimento em que se encontra e o conduz à passagem para um humilde êxtase que é ao mesmo tempo êxodo de si mesmo e descoberta de si mesmo no “estar sendo”. É quando sentem “estar sendo” juntos e em comunhão que os seres humanos encontram de fato o amor.

Mas é sobretudo em A Paixão segundo GH que podemos encontrar a mística de Clarice mais profundamente narrada. GH, a mulher sem paixão, vai se defrontar com o pathos, com a paixão, a partir da viagem kenótica que faz ao coração da matéria, ao submundo das entranhas de um inseto, ao caos primitivo antes que ele seja pelo Criador resignificado em cosmos. O romance de Clarice falará de um pathos instituinte, de um ser humano que padece sem nada poder fazer por sua própria iniciativa para tal, a revelação da transcendência a partir de uma experiência que foge a toda “normalidade”: a aparentemente abjeta “comunhão” com as entranhas de uma barata morta.

Não cremos ser um “abuso” proveniente da nossa área de competência – a teologia – classificar a viagem de G. H. ao entrar no quarto humilde de sua empregada e defrontar-se com o inseto que a fita e provoca, como mística. Ou até mesmo – ousaria mais – como crística. Pois crístico não é o movimento que faz o Filho de Deus ao não aferrar-se a suas prerrogativas e a esvaziar-se, despojar-se, humilhar-se, obediente até a morte, e morte de cruz? E místico não é o movimento bilateral que faz a divindade unir-se à humanidade e vir resgatá-la a partir da lama do pecado onde se encontra mergulhada, cristificando-a e unindo-a a Si mesmo no Espírito Santo, que habita em nós, em kenosis amorosa, podendo ser abafado, contristado e mesmo extinto, como afirma Paulo de Tarso?

O itinerário de G. H. é místico. E é místico porque ascético e purificador, enquanto prepara o alargamento do eu que se segue à sua morte pelo sacrifício ascético de mergulhar no coração da matéria. Toca os extremos da condição humana, quais sejam: a vida e a morte. “A descida na direção dessa existência impessoal produz-se como verdadeira ascese: a personagem desprende-se do mundo e experimenta, após gradual redução dos sentimentos, das representações e da vontade, a perda do eu”

Ao realizar o que chama de “ato ínfimo” – comungar com a matéria viva, no coração das coisas - G. H. chega à plenitude ansiada e desejada. Não compreender, não dominar, não pairar por cima das coisas. Mas descer, mergulhar, sujeitar-se ao ínfimo, ao coração da matéria, mergulhar na descida para encontrar então aquilo que não consegue nomear, mas cujo nome existe e é Mistério inexpugnável. Atraída por Eros, misteriosamente, à beleza invertida daquilo que o vulgo convencionou chamar de feio, encontra ágape em amor oblativo, gratuito, adorante. “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.”

- Maria Clara Bingemer, via
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