23 de dez. de 2012

a 27ª vítima


De Dorrit Harazim, publicado no Globo de hoje (leia na íntegra aqui), sobre o massacre de Newtown (mais aqui)

(...) Todas as faixas, desenhos, mensagens, velas, bichos de pelúcia, buquês de flores que brotaram em Newtown honram os “26 anjos que nos guiarão”. Essas 20 crianças e 6 adultos viverão para sempre na memória local.

Só que foram 27 os fuzilados pelo jovem Adam Lanza, de 20 anos. Sua primeira vítima daquela tenebrosa sexta-feira 13 de dezembro foi a própria mãe, morta em casa com quatro tiros de rifle calibre .22 na cabeça. Só depois o surtado Adam rumou para a escola fundamental, onde executou as outras 26 vítimas.

Um único tributo, rabiscado numa folha de papel colada num pedaço de madeira, presta homenagem a Nancy Lanza em Newtown. “Outros se consolam mutuamente por escolhas que você teve de fazer sozinha. Quem nunca errou atire a primeira pedra”, diz um trecho do texto. (...)

Como se sabe, tanto o rifle de assalto Bushmaster M4 com o qual Adam executou a matança como as outras quatro armas encontradas em sua casa pertenciam à mãe e estavam devidamente registradas. A sra. Lanza seguia com convicção os preceitos de quem, nos Estados Unidos, se declara “adepto da sobrevivência” — grupo de pessoas em permanente estado de alerta para a erupção do caos social no país. Estocar mantimentos e armas e aprimorar a pontaria para se proteger do perigo fazem parte dos cuidados essenciais dessa tribo. (...)

Com o filho, a adepta da sobrevivência fazia exercícios regulares de tiro numa academia da cidade.

Segundo análise de dados estatísticos feita por Nate Silver, o festejado guru da mídia que acertou todas as previsões da reeleição de Obama no mês passado, a variável mais confiável para se prever a intenção de voto de um eleitor, nos Estados Unidos, é a posse de armas. Gênero, raça, faixa etária, renda familiar, educação, religião, domicílio — nenhum desses fatores é tão determinante na intenção de voto quanto a posse de armas.

Mais da metade dos casais com filhos pequenos que votam no Partido Republicano tem armas em casa. Entre eleitores democratas, esse número cai para “apenas” um em cada quatro casais. A média nacional americana está em três armas por domicílio.

Basta assistir à televisão nos Estados Unidos para saber que a cada ano 34 civis são mortos por armas de fogo. Em apenas seis meses, esse total iguala o número de militares americanos mortos nas guerras do Iraque e do Afeganistão.

Nancy Lanza tinha, em casa, um filho problema e cinco armas. Inicialmente os moradores de Newtown a prantearam como vítima inocente, a ser computada e incluída nos memoriais. Pouco a pouco, sua memória começa a ser deslocada da condição de vítima para a de corresponsável pela tragédia de Newtown.

O problema não era apenas o filho, o morto de número 28 da chacina.

Menos de duas horas após o término do momento nacional de silêncio, o CEO da Associação Nacional do Rifle, a robusta entidade que promove e defende o armamento individual de todo cidadão, saiu da retranca que mantivera desde o massacre. “Só uma pessoa do bem com uma arma na mão é capaz de deter uma pessoa do mal que tem uma arma na mão”, declarou sem pestanejar Wayne LaPierre, em entrevista coletiva. Culpou a mídia, os videogames e a indústria do entretenimento pela matança e aproveitou para lançar novo apelo para que toda escola americana adote seguranças armados. (...)

Como observa Michael Moore (já postei aqui, mas nunca é demais repetir): "Somos um povo que se assusta com facilidade e é fácil de ser manipulado pelo medo. De que temos tanto medo, que necessitamos ter 300 milhões de armas de fogo em nossas casas? Quem vai nos ferir? Por que a maior parte dessas armas se encontra nas casas de brancos, nos subúrbios ou no campo? Talvez, se resolvêssemos nosso problema racial e nosso problema de pobreza (uma vez mais, somos o número um com maior número de pobres no mundo industrializado), houvesse menos pessoas frustradas, atemorizadas e encolerizadas estendendo a mão para pegar a arma que guardam na gaveta."

* * *


Desde semana passada, já vi esse texto em vários lugares (leia na íntegra aqui). É o depoimento pungente da mãe de um menino que talvez se pareça com Adam Lanza, o rapaz que cometeu o massacre de Newtown.

Eu sou a mãe de Adam Lanza

"(...) Eu vivo com um filho que tem problemas mentais. Amo meu filho. Mas ele me apavora.

Algumas semana atrás, Michael pegou um faca e ameaçou me matar e depois a si mesmo porque eu pedi que ele devolvesse na biblioteca os livros que já estavam atrasados. Os irmãos de 7 e 9 anos sabiam qual era o plano de emergência — correram para o carro e se trancaram antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa. Eu consegui tirar a faca de Michael, e depois metodicamente recolhi todos os objetos cortantes da casa e os coloquei dentro de uma sacola gigante que agora anda sempre comigo. Depois de tudo isso, ele seguiu gritando, me insultando e ameaçando me matar e me machucar.

O conflito terminou com três policiais corpulentos e um paramédico lutando com o meu filho para colocá-lo em um maca e levá-lo para a emergência do hospital local. A ala psiquiátrica não tinha nenhum leito livre no dia. Michael foi atendido no pronto socorro e nos mandaram de volta para casa com uma prescrição de Zyprexa e um retorno agendado com um psiquiatra infantil.

Ainda não sabemos o que há de errado com Michael. Espectro do Autismo, TDAH, Transtorno Explosivo Intermitente foram mencionados em reuniões com assistentes sociais, terapeutas, professores e pedagogos. Michael tem tomado uma enorme quantidade de antipsicóticos e drogas alteradoras de humor. Nada parece funcionar. (...)

No terceiro dia, ele era o meu calmo e doce garoto de novo, se desculpando e prometendo melhorar. Eu escutei essas promessas durante anos. Eu não acredito mais nelas. No formulário de internação, na pergunta “O que você espera do tratamento?”, eu escrevi, “preciso de ajuda”.

E eu preciso mesmo. Esse problema é grande demais para eu administrar sozinha.

Eu estou dividindo essa história porque eu sou mãe de um Adam Lanza. Eu sou mãe de um Dylan Klebold e um Eric Harris. Eu sou mãe de um James Holmes. Eu sou mãe de um Jared Loughner. Eu sou mãe de um Seung-Hui Cho. E esses rapazes — e suas mães — precisam de ajuda. No despertar de mais uma tragédia nacional, é fácil falar sobre armas. Mas é hora de falarmos sobre doenças mentais.

De acordo com uma revista especializada, desde 1982 —, 61 assassinatos em massa envolvendo armas de fogo aconteceram no país. Desses, 43 dos assassinos eram homens brancos, e apenas uma era mulher. A revista voltou seu foco para a questão dos assassinos terem obtido ou não suas armas legalmente (a maioria sim). Mas esse visível sinal de problema mental deveria nos levar a considerar quantas pessoas nos Estados Unidos vivem com medo, como eu vivo.

Quando eu perguntei para o assistente social que cuida do meu filho quais eram as minhas opções, ele respondeu que a única coisa a fazer é acusá-lo de um crime. “Se ele estiver no sistema, eles vão criar um rastro de documentos”, disse. “Essa é a única forma de conseguir que algo seja feito. Ninguém vai te dar atenção a menos que você tenha uma queixa formal.”

Eu não acredito que meu filho deva ir para a cadeia. Mas parece que os Estado Unidos estão usando as prisões como uma solução opcional para doentes mentais. De acordo com entidades de Direitos Humanos, o número de internos mentalmente doentes quadruplicou entre 2000 e 2006, e continua aumentando — na verdade a proporção de doentes mentais entre prisioneiros é cinco vezes maior que entre a população não encarcerada.

Ninguém quer mandar o gênio de 13 anos que ama Harry Potter e seu bichinho de pelúcia para a cadeia. Mas nossa sociedade, com o estigma que as doenças mentais provocaram o declínio do sistema público de saúde, não nos dá outra opção.

Aí então outra alma torturada atira em um restaurante. Um shopping. Uma classe de primeira série. E nós cerramos nossas mãos e dizemos: “Algo tem que ser feito”.

Eu concordo que algo tem que ser feito. É hora de uma significativa e abrangente discussão nacional a respeito da saúde mental. É o único jeito de realmente curarmos o país.

Deus me ajude. Deus ajude Michael. Deus ajude nós todos.

* * *


E vale ler as reflexões da Nanda, no Blog Mamíferas, a partir do massacre de Newtown e do filme Precisamos falar sobre Kevin, aqui:

(...) Em casos de atiradores adolescentes, até onde a culpa é dos pais? Porque precisamos culpar outras pessoas que não os atiradores? Não estou isentando o papel (ou ausência) dos pais na formação desses indivíduos, que em poucas instâncias sobrevivem para a realização de testes que comprovem sua psicopatia ou outras doenças mentais, mas será que está em nosso poder impedir que nossos filhos queimem mendigos, ou atropelem ciclistas, ou atirem em crianças na escola?

O medo do meu filho ser vítima é o mesmo medo de que ele seja o criminoso. Mas a culpa não é da mãe.

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