2 de fev. de 2013

o dia de iemanjá e a falsa democracia racial no Brasil


De Gustavo Barbosa, no Carta Potiguar:

As festividades, odes e oferendas a Iemanjá no dia de hoje, 02 de fevereiro, tanto por parte de adeptos e não-adeptos do Candomblé, deixa evidente a inegável influência da rica cultura africana na construção da identidade cultural do brasileiro. No entanto, é fenômeno por meio do qual uma das grandes contradições do nosso povo acaba também evidenciada: apesar do caldeirão étnico-cultural sob o qual se formou a singular diversidade brasileira, as religiões de matriz africana continuam sendo lamentavelmente perseguidas e discriminadas, alvo de violência, repressão e de um preconceito tanto institucional quanto por meio dos setores mais conservadores – e ignorantes – da sociedade.

É comum, por exemplo, vermos pessoas usando o termo “macumba” para se referir de forma pejorativa ao Candomblé, além da constante depredação de terreiros por parte de vândalos que, se arrogando em descabidas justificativas divinas, se acham no direito de cometer infrações contra quem lhe é diferente. Para os que compactuam com essa espécie de comportamento, parece não haver respeito e tampouco tolerância para qualquer coisa que, insolentemente, ouse se situar fora dos padrões eurocêntricos bem como do eixo das tradições cristãs. Há 120 anos que o Estado Laico foi instituído no Brasil, mas a provinciana mentalidade da colônia e do império continua varando o tempo com uma força que assusta. E com a multiplicação e fortalecimento das fundamentalistas igrejas neopentecostais, esse intolerante ranço feudaloide “anti-pagão” parece se tornar cada vez mais robusto, isso em tempos de uma república que ousa se dizer consolidada.

Nesse quadro endêmico de preconceito e intolerância, Iemanjá parece ser pinçada de todo o contexto cultural e religioso no qual está inserida; enquanto aparenta representar um consenso social quanto aos seus festejos, o Candomblé e a Umbanda prosseguem marginalizados, como se não houvesse qualquer vínculo da orixá dos mares com tais religiões. Meio a sua tamanha popularidade subjaz a falsa impressão de que no Brasil há pleno e absoluto respeito à diversidade religiosa. Perseguições fascistas, tais quais as que ocorriam no Estado Novo, seriam coisa de um passado longínquo e distante, alheio à realidade atual.

O mais interessante é que, daqui a uma semana, veremos repetir o fenômeno sazonal onde hordas de brancos preconceituosos, abastados e bem nutridos, se esquecerão da odiosa “macumba” e pagarão rios de dinheiro para vestir seus coloridos abadás (palavra de origem africana trazida pelos negros malês para a Bahia) com a finalidade de pular ao carnavalesco ritmo dos batuques, bongôs, congas e timbais reproduzido diretamente dos rituais religiosos do Candomblé, sempre cantarolando grudentos refrãos do Axé – “energia”, do Iorubá – contendo uma miríade de expressões do vernáculo africano, como “Dandalunda” e “Mugegé”. Vê-se que não assusta nem um pouco o fato de 91% dos brasileiros reconhecer o Brasil como um país preconceituoso, mas apenas 3% se reconhecerem como tal.

a vida e a morte no bolso

Ruy Castro, na Folha de S. Paulo hoje:

Nunca antes na história da humanidade isso aconteceu. Mas, hoje, uma pessoa pode sair à rua levando no bolso, juntamente com carteira, chaves e chicletes, toda a biblioteca que ela tem em casa. Ou a Biblioteca Nacional. O que fará na rua com essa quantidade de livros resta em aberto. Mas é incrível imaginar que, com um celular, um cidadão pode se sentar num banco de praia e folhear, digamos, a Bíblia de Gutenberg, o romance "Alzira, a Morta Virgem" e a caudalosa poesia de Sousândrade numa só sentada.

Se quiser, pode flanar levando também sua discoteca inteira, desde a série de disquinhos que ouvia em criança, incluindo "A História da Baratinha", até sua coleção completa de Thelonious Monk ou a íntegra da obra de Mahler. Cabe tudo num aparelho que vai no bolsinho caça-níqueis, plugado a um fone de ouvido.

E não sei se o fulano terá como levar o Louvre, o Prado e o Guggenheim no bolso -porque, por enquanto, aqueles milhares de quadros cheios de cores ainda devem ser uma carga muito pesada para um celular. Mas talvez isso nem seja necessário -com o dito, você pode baixar Velázquez, Seurat, Norman Rockwell e quem mais estiver dando sopa na "nuvem". A qual, parece, não tem limite.

Mas nem tudo é tão bonito. A engenhoca que permite ler, ouvir ou apreciar as maravilhas criadas pelo homem é a mesma que torna possível a alguém andar pela cidade com o arquivo da CIA ou do Mossad no bolso interno do paletó -com informações que, à pressão de uma tecla, podem derrubar presidentes, desarticular sistemas de defesa ou levar países à guerra. Ou transportar as combinações capazes de acionar um ataque químico ou uma bomba atômica, decidindo o destino de bilhões.

E só porque, um dia, alguém quis telefonar da rua para a namorada e não havia um orelhão à mão.

timbuktu pode ser qualquer lugar


De Alexandre Vidal Porto, na Folha de S. Paulo de hoje:

Timbuktu é uma cidade no centro do Mali, na entrada do Deserto do Saara. Originou-se no século 5º e teve seu apogeu, como entreposto comercial e centro de difusão da cultura islâmica, nos séculos 15 e 16. Em 1988, a Unesco incluiu Timbuktu na lista do Patrimônio Comum da Humanidade.

Em abril de 2012, a cidade foi invadida e caiu sob o controle do Movimento Nacional para a Liberação do Azawad e do Ansar Din, grupos fundamentalistas armados, que instituíram observância estrita da lei religiosa islâmica. Proibiram qualquer tipo de música, destruíram monumentos e documentos centenários que consideraram blasfemos e apedrejaram mães solteiras.

Nos últimos dias, após dez meses de ocupação, as autoridades do Mali, com a ajuda de tropas francesas, conseguiram retomar o controle da cidade. A lei nacional foi reinstituída, e a população de Timbuktu pode voltar a ouvir música.

O processo de controle do governo pela religião, que, em Timbuktu, sucedeu de forma brusca e radical, ocorre em muitas outras partes do mundo, de modo mais lento e sutil, mas igualmente insidioso.

É sempre o mesmo fenômeno: a religião querendo deixar de ser a lei de Deus para ser a lei de todos.

Em vários países, grupos religiosos buscam articular-se politicamente. Partidos ultraortodoxos detêm 18 dos 120 assentos do Parlamento de Israel. O partido islâmico da Irmandade Muçulmana controla o governo do Egito.

Ao mesmo tempo, fundamentalistas assumem ares de superioridade moral e se arrogam a missão de impor, ainda que de forma violenta, uma moralidade baseada na fé, na qual a racionalidade não tem lugar.

O radical em Jerusalém que cospe na garota de oito anos porque ela não está vestida decentemente é o mesmo que, no Brasil, destrói o centro religioso de matriz africana e, no Paquistão, alveja a cabeça da menina que quer acesso à educação. Desqualifica-se a diversidade com argumentos que remontam à Idade Média e às Guerras Santas.

Na democracia, há espaço para todo tipo de expressão, inclusive as radicais. Mas não para a intolerância. A maioria governa, mas as minorias devem ter direitos assegurados. É essa a regra de ouro, é o que faz o sistema democrático funcionar. Ninguém é melhor que ninguém. Todos são iguais perante a lei.

Garantir que, no tratamento da coisa pública, não haja lugar para proselitismo religioso é uma tarefa difícil, mas que se impõe aos líderes políticos e aos defensores da democracia.

Em seu segundo discurso de posse, o presidente dos EUA, Barack Obama, comentou sobre as dificuldades de se negociar com quem se considera emissário direto de Deus.

A história da humanidade está repleta de exemplos negativos da influência da religião no Estado.

A separação entre igrejas e governo é salvaguarda da democracia e uma conquista valiosa da civilização. A época em que religião e Estado se misturavam já passou. Os tempos da Santa Inquisição não deixaram boas lembranças. Ninguém quer voltar para lá.

criticando o sistema de gêneros


De Rita Colaço, em seu blog Comer de Matula (leia na íntegra aqui):

"Semana passada a Rede Globo de televisão apresentou no Fantástico - a sua revista dominical - uma entrevista com a modelo Lea T. [saiba mais aqui]

Lea, ali, deixou claro ter consciência de que, mesmo operada (ela realizou a cirurgia de redesignação sexual há um ano no exterior), preservava em seu corpo características tidas como do sexo masculino ("ombros largos", mãos e pés "grandes"). - Só que o disse, em resposta à pergunta em si mesma risível (dizendo o mínimo) do "você se sente 100% mulher?". E, talvez não percebendo o tom capcioso da jornalista, iniciou a sua frase com "não...".

Mas ela disse outras coisas além. Ela ousou afirmar que não é um detalhe da anatomia ou uma cirurgia que determina, que condiciona a felicidade de alguém. Disse que a intervenção é um processo doloroso e, indagada, respondeu que não indicaria.

Os pontos centrais foram, para mim, destacar que a cirurgia é um processo mais para agradar a sociedade do que a própria pessoa transexual (pois a readequa à fixidez do modelo imposto); e que o bem-estar individual não é determinado pela anatomia. (...)"

Só pra complementar o excelente artigo "Todo mundo é trans", de Marilia Coutinho, que postei aqui. Vale muito também ler o guest post da Hailey no blog da Lola, aqui.

desafios do futuro


O Senado do Chile tem uma comissão que se dedica a pensar o futuro, sem compromisso com o dia a dia. Nela reúnem-se senadores e público em geral para imaginar as alternativas adiante e orientar o país na sintonia com os rumos do mundo.

Nos dias 17, 18 e 19 de janeiro, essa comissão organizou o II Congresso do Futuro, com 52 pensadores e políticos e um público de cerca de 300 pessoas, para discutir quais os cenários futuros em áreas tão distintas quanto a nanobiotecnologia, que vai revolucionar o próprio conceito de medicina; a política e suas novas formas de participação no futuro; a saúde dos oceanos e dos rios; o mundo pós-energia fóssil; as novas fronteiras da vida, inclusive com a inteligência artificial e o potencial das células-tronco; as novas fronteiras do universo, inclusive o potencial de viagens espaciais e exploração do espaço; os desafios da alimentação, tanto para eliminar a fome como para evitar a obesidade e o envenenamento por comidas prejudiciais à saúde; a nanotecnologia e a sua importância para o futuro em todas as áreas da tecnologia; e a evolução da moral e da conduta humana.

O evento possibilitou aos senadores situarem suas atividades e responsabilidades em defesa do Chile, levando em conta o que vai mudar no mundo nos próximos anos. Os que defendem que a economia é a base da razão de ser do progresso humano ficaram surpresos com os limites do crescimento e com o risco de mais uma vez ver o continente latino-americano fora das grandes mudanças no mundo.

Para um brasileiro, com o sentimento da dimensão de sermos a sexta economia do mundo, ficou a sensação de frustração porque corremos o risco de perder a chance de participar de mercado de cerca de US$ 100 bilhões, só na produção dos vetores e equipamentos da biotecnologia; ficar de fora da exploração espacial e do domínio das novas fontes de energia; do aproveitamento de todas as invenções ao redor do potencial da inteligência artificial; além do risco de perder o que já temos como exportadores de alimentos, diante das novas formas de alimentação.

Depois de três dias de debates, os senadores chilenos presentes e os que tomarão conhecimento dos conteúdos pela televisão perceberam o enorme esforço que devem fazer para que o Chile tente se sintonizar com a realidade mutante do mundo em direção ao futuro. Inclusive como fazer política, em um tempo no qual a comunicação entre eleitor e eleito já não é mais feita a cada quatro anos por comícios, mas instantaneamente, on-line, na qual o presente já é parte do futuro de um bom político.

Mas, se os senadores chilenos ficaram angustiados, imagine o senador brasileiro que, depois de sua palestra sobre o futuro, volta para participar de uma eleição para eleger a nova Mesa Diretora do Senado Federal; de total alienação nas últimas décadas em relação às responsabilidades para com o país, presa num dia a dia frustrante, sem poder e às vezes também sem pudor. Um Senado sem consciência de sua responsabilidade para com o futuro, como se a política fosse apenas acordos – nem sempre lícitos – para manter as vantagens que os cargos oferecem. Uma eleição que ocorre quando o mundo está mudando ao redor e se elege uma Mesa Diretora para nada mudar, simplesmente para manter o costume do velho ritmo de pensar apenas nas artimanhas políticas em que o passado nos viciou.

- Cristovam Buarque, na Gazeta do Povo (PR), 01-02-13 (via)

300 picaretas e uma pá de cal


Num dos meus primeiro mandatos de deputado federal defendi na tribuna da Câmara Os Paralamas do Sucesso, acusados de caluniar o Congresso Nacional com a música Luís Inácio (300 picaretas'). Os primeiros versos diziam: “Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou/ são trezentos picaretas com anel de doutor!'.

Defendi-os em nome da liberdade de expressão. Não concordava inteiramente com Lula. Talvez fossem 312 ou 417. Reconheço que 300 é um número redondo, mais fácil de inserir nos versos de uma canção popular. Além do mais, nem todos têm anel de doutor. Mas isso são detalhes. O mais importante é registrar que estávamos na véspera da chegada do PT ao governo federal, início da era do “nunca antes neste país”. E aonde chegamos, agora, uma década depois?

Renan Calheiros deve assumir a presidência do Senado, Henrique Eduardo Alves, a da Câmara e o deputado Eduardo Cunha, a liderança do PMDB. Caso se concretizem, esses eventos representam um marco na História do Congresso. Significa que, para muitas pessoas informadas, o Congresso deixa de existir. É o fim da picada...

Conheço os passos dessa estrada porque transitei nela 16 anos. O mensalão significa o ato inaugural, a escolha do tipo e da natureza de alianças políticas do novo governo. O mensalão significa a compra de votos dos partidos, uma forma de reduzir o Congresso a um balcão de negócios. Em seguida vieram as medidas provisórias (MPs). Governar com elas é roubar do Congresso tempo e energia para seus projetos. A liberação das emendas parlamentares era a principal compensação pelo espaço perdido.

Mas deputados e senadores não cedem o espaço porque são bonzinhos ou temem o governo. As MPs são uma forma simplificada de o governo realizar seu objetivo. Os parlamentares tomaram carona nesse veículo autoritário. E inserem as propostas mais estapafúrdias no texto das MPs. Com isso querem aprovar suas ideias sem o caminho democrático que passa por debates em comissão, audiências públicas, etc.

Na Câmara essas inserções oportunistas são chamadas de jabuti O nome vem da frase “jabuti não sobe em árvore, alguém o coloca-lá”. O nome jabuti pressupõe que há interesses econômicos diretos por trás de cada uma dessas emendas.

A perda de espaço para o governo não é o problema, desde que todos os negócios continuem fluindo, das MPs às emendas ao Orçamento. O espaço não interessa, o que interessa é o dinheiro. Espaço por espaço, o Congresso já abriu uma grande avenida para o Supremo Tribunal Federal julgar casos polêmicos, como aborto e união gay.

Os negócios, como sempre, são o centro de tudo. Negócios, trambiques, maracutaias e, como diziam Os Paralamas em 2003, “é lobby, é conchavo, é propina e jeton”. Uma década depois, vendo o Congresso idêntico à sua caricatura, pergunto quando é que nos vamos dar conta dessa perda, desse membro amputado de nossa anatomia democrática.

A saída da minoria - chamada, com uma ponta de razão, de Exército Brancaleone - foi pressionar por dentro e estabelecer uma tensão entre ala e a opinião pública. Na definição do voto aberto para cassar deputados, vencemos o primeiro turno porque a imprensa e eleitores estavam de olho. Vitória esmagadora, contra apenas três abstenções. Agora até esse caminho está bloqueado. Todos os dispositivos internos foram reforçados e passaram a impedir tais votações. Com a cumplicidade do PT, os piores elementos foram ascendendo aos postos estratégicos e agora o esquema chega ao auge, com a escolha de Calheiros e Alves.

De um lado, interessa-me avaliar como será o futuro do País sem um Congresso que possa realmente ser chamado por esse nome. De outro lado, um olho na saída. Não sei se repetiria hoje a campanha contra Renan, os cartazes com chapéu de cangaceiro e a frase: “Se entrega, Corisco”. Nem se gostaria de ver de novo aqueles bois se deslocando pelos campos alagoanos para as terras de Renan, para comprovar que era dono de muitas cabeças de gado. O ideal, hoje, seria poupar os bois dessa nova viagem inútil. Passar o vídeo, criar uma animação, substituir toneladas de carne de boi por milhões de pixels.

Henrique Alves destinou dinheiro a uma empresa fantasma de um assessor dele. No lugar deserto onde a empresa funcionava havia apenas um bode, chamado Galeguinho. O bode foi dispensado depois de sua estreia. Os bois mereciam o mesmo. “Parabéns, coronéis, vocês venceram”, diz a letra de Luís Inácio. Deixaram-nos monitorando bois de helicóptero e pedindo ao bode que nos levasse ao gerente da empresa.

Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou. Mas foi o primeiro a passar para o lado deles e a contribuir com algumas novas espécies para a fauna já diversa que encontramos em 2003.

A vitória dos cavaleiros do apocalipse recoloca a urgência de salvar o Congresso dele mesmo. A maneira de potencializar o trabalho da minúscula oposição é a maior transparência possível e uma ajuda da opinião pública. A partir dessa vitória, Calheiros, Alves e seus eleitores no Parlamento dizem apenas à sociedade: somos assim, e daí? Depois do descanso merecido, o bode que é o porteiro da empresa favorecida por Alves deveria ser colocado na porta do Congresso.

É impensável que 300, 312 ou 417 - não importa o número exato - picaretas enfrentem o Brasil sem uma represália dura. O espírito do “eles lá, nós aqui”, de distância enojada, no fundo, é bom para eles, que querem total autonomia para seus negócios. Será preciso mostrar que toda essa farsa é patrocinada pelo dinheiro público. E que sua performance será amplamente divulgada agora e no período eleitoral. O instinto de sobrevivência da instituição não existe. Mas o do político é muito grande. É preciso que ele sinta o desgaste pessoal produzido por suas escolhas.

Muitas pessoas vão trabalhar nisso, cada uma no seu posto, às vezes em manifestações. A eleição direta para presidente foi uma conquista. A perda do Congresso para o ramo dos secos e molhados é uma dolorosa ferida em nossa jovem democracia.

Nós demos um boi para não entrar nessa luta. Daremos um bode para não sair dela.

- Fernando Gabeira, no Estadão, 01-02-13 (via)

além da justiça


De Mauro Santayana, para o Jornal do Brasil, em 01-02-13:

Agricultores brasileiros, também cúmplices da agressão química contra a natureza, estão em litígio contra a Monsanto, que lhes cobrou royalties pelo uso de uma tecnologia cuja patente expirou em 2010, de acordo com a legislação brasileira. As leis nacionais estabelecem que o início da vigência de uma patente é a data de seu primeiro registro. A Monsanto invoca a legislação norte-americana, pela qual a patente passa a vigorar a partir de seu último registro. Como sempre há maquiagem dos processos tecnológicos, a patente não expira jamais.

Os lobistas da Monsanto não tiveram dificuldades em negociar acordo vantajoso, para a empresa, com os senhores do grande agronegócio, reunidos em várias federações estaduais de agropecuária, e com a poderosa Confederação Nacional da Agricultura, comandada pela senadora Kátia Abreu. Pelo cambalacho, a Monsanto suspenderia a cobrança dos royalties até 2014, e os demandantes desistiriam dos processos judiciais.

Uma das maldições do homem é a tentativa de criar uma natureza protética, substituindo o mundo natural por outro que, sendo por ele criado, poderá, na insolência da razão técnica, ser mais perfeito. Essa busca, iniciada ainda na antiguidade, continuou com os alquimistas, e se intensificou com as descobertas da química, a partir do século 18. O conluio entre a ciência, mediante a tecnologia e o sistema capitalista que engendrou a Revolução Industrial, amparada pelo laissez-faire, exacerbou esse movimento, que hoje ameaça a vida no planeta.

A Alemanha se tornaria, no século 19, o centro mais importante das pesquisas e da produção industrial de novos elementos a fim de substituir a matéria natural, construída nos milênios de vida no planeta, por outra, criada com vantagens para o sistema de produção industrial moderno.

Não há exemplo mais evidente desse movimento suicida do que a Monsanto. A empresa foi fundada em 1901 a fim de produzir sacarina, o primeiro adoçante sintético então só fabricado na Alemanha. Da sacarina, a empresa foi ampliando seus negócios com outros produtos sintéticos, como a vanilina e corantes, muitos deles cancerígenos. Não deixa de ser emblemático que o primeiro grande cliente da Monsanto tenha sido exatamente a Coca-Cola. É uma coincidência que faz refletir.

Não é só a Monsanto que anda envenenando as terras e as águas com seus produtos químicos. Outras empresas gigantes da química com ela competem na produção de agrotóxicos mortais. Com o controle da engenharia genética aplicada aos vegetais de consumo humano e de consumo animal, no entanto, ela tem sido a principal responsável pelos danos irreparáveis à natureza e à saúde dos animais e dos seres humanos.

Vários países do mundo têm proibido a utilização das sementes transgênicas da Monsanto, entre eles a França, que interditou o uso das sementes alteradas. No Brasil, ela tem vencido tudo, com a conivência das autoridades responsáveis, ou irresponsáveis. A Comissão Técnica de Biossegurança e o Conselho Nacional de Biossegurança vêm dando sinal verde aos crimes cometidos pela Monsanto e outras congêneres no Brasil.

Essa devia ser uma preocupação prioritária do Parlamento, que só se movimenta com entusiasmo quando se trata das articulações internas para a eleição bianual de suas mesas diretoras.

onde foi parar o seu sonho?

Ricardo Mendes, via

Sempre que começa um ano fico aqui pensando onde foram parar os sonhos das pessoas. Logo eu, que um dia sonhei morar numa casa ecológica no meio do mato e hoje vivo na maior cidade da América do Sul entre automóveis e arranha céus, buzinas, fumaças e cheiro de gasolina.

Gostaria de saber onde foi parar o sonho de Aretuza, que vivia escondida e clandestina no DCE de Belo Horizonte enquanto a sede da UNE na Cidade Maravilhosa ardia em chamas.

O sonho de Todinho, companheiro do Colégio de Aplicação que jogava nos policiais pedaços de paralelepípedos lá do último andar da Faculdade de Filosofia.

O sonho de Kaká, que um dia voou para Estocolmo com vontade de plantar morangos em troca de um punhado de coroas.

De Bebeto, que embarcou de bermuda e tamanco num vapor barato rumo à Grécia e nunca mais deu notícias.

De Azeitona, que abandonou os estudos em Belo Horizonte e chegou a Paris disposto a estudar Agronomia sonhando plantar café no sul de Minas Gerais.

De Elena, que queria porque queria zarpar para a África disposta a pegar em armas e lutar ao lado das companheiras do MPLA.

Gostaria de saber onde foi parar o sonho de quem dormiu no sleeping bag, de quem quase morreu de amor no Estácio, de quem botou o bloco na rua, de quem manteve a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

Gostaria de saber onde foi parar o sonho daqueles que, em Santiago do Chile , na calada da noite cantavam La Palmatoria ao lado de Victor Jara. O sonho daquela multidão na Praça da Revolução em Havana acompanhando Pablo Milanés cantando Amo esta Isla.

Gostaria de saber onde foi parar o sonho daqueles malucos que nas tardes de sábado sentavam no chão do Cine Pathé para assistir Easy Rider pela décima vez. O sonho daqueles que tiraram a roupa e mergulharam na lama em Woodstock. O sonho daquelas que queimaram sutiãs em praças publicas nos quatro cantos do mundo. Daqueles que estavam ali à beira da cama de John e Yoko em Amsterdam entoando Give Peace a Chance e daqueles que cantaram juntos Let the Sunshine In em Hair.

Sempre que começa um ano faço uma faxina na minha revistaria. Dessa vez caiu em minhas mãos um exemplar da antiga Argumento, um número que trazia um ensaio fotográfico primoroso de Ricardo Mendes.

“Qual é o seu maior sonho?”, perguntou ele no título. Baseado no trabalho do fotógrafo Martín Weber, que realizou a exposição A Map of Latin American Dreams, Mendes pediu a cada um que escrevesse numa pequena placa o seu maior sonho.

O que mais me impressionou foi o sonho de Bigode, o guardador de carros que trabalhava em frente à Livraria Argumento do Leblon. Ele escreveu simplesmente: “Encontrar Sueli”. Com certeza um antigo amor que ficou à beira do caminho perdido no tempo e no espaço.

Dei um Google e encontrei quase cinco milhões de citações para Sueli. Encontrei Sueli Costa, Sueli Catão, Aragão, Sueli Aparecida, Godim, Rutkowski mas nenhuma Sueli, simplesmente Sueli, que deixasse pistas de estar procurando desesperadamente um tal de Bigode, guardador de carros da Livraria Argumento.

- Alberto Villas, na Carta Capital, em 31-01-13

1 de fev. de 2013

65 anos do assassinato de Gandhi


Sejamos nós a mudança que queremos ver no mundo.
- Mahatma Gandhi

Mohandas Karamchand Gandhi (em hindiमोहनदास करमचन्‍द गान्‍धी; em guzerate: મોહનદાસ કરમચંદ ગાંધી; Porbandar, 2 de outubro de 1869 - Nova Déli, 30 de janeiro de 1948), mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi (do sânscrito "Mahatma""A Grande Alma") foi o idealizador e fundador do moderno Estado indiano e o maior defensor do satyagraha (princípio da não-agressão, forma não-violenta de protesto) como um meio de revolução.

O princípio do satyagraha, frequentemente traduzido como "o caminho da verdade" ou "a busca da verdade", também inspirou gerações de ativistas democráticos e anti-racismo, incluindo Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela. Freqüentemente Gandhi afirmava a simplicidade de seus valores, derivados da crença tradicional hindu: verdade (satya) e não-violência (ahimsa).

(Fonte: Wikipedia)


Oscar de melhor filme, direção e ator em 1982. Filmaço. Vídeos via

“direitos humanos para humanos direitos”


Já andei espalhando esta crônica do Matheus Pichonelli na Carta Capital por aí e hoje cedo, pelos meandros desta internet rizomática, me deparei com ela de novo. Vale espalhar mais um bocadinho.

Almeidinha era o sujeito inventado pelos amigos de faculdade para personalizar tudo o que não queríamos nos transformar ao longo dos anos. A projeção era a de um cidadão médio: resmungão em casa, satisfeito com o emprego na “firma” e à espera da aposentadoria para poder tomar banho, colocar pijama às quatro da tarde, assistir ao Datena e reclamar da janta preparada pela esposa. O Almeidinha é aquele sujeito capaz de rir de qualquer piada de português, negro, gay e loira. Que guarda revistas pornográficas no armário, baba nas pernas da vizinha desquitada (é assim que ele fala) mas implica quando a filha coloca um vestido mais curto. Que não perde a chance de dizer o quanto a esposa (ele chama de “patroa”) engordou desde o casamento.

O Almeidinha, para nosso espanto, está hoje em toda parte. Multiplicou-se em proporção geométrica e, com os anos, se modernizou. O sujeito que montava no carro no fim de semana e levava a família para ir ao jardim zoológico dar pipoca aos macacos (apesar das placas de proibição) sucumbiu ao sinal dos tempos e aderiu à internet. Virou um militante das correntes de e-mail com alertas sobre o perigo comunista, as contas no exterior do ex-presidente, os planos do Congresso para acabar com o 13º salário. Depois foi para o Orkut. Depois para o Facebook. Ali encontrou os amigos da firma que todos os dias o lembram dos perigos de se viver num mundo sem valores familiares. O Almeidinha presta serviços humanitários ao compartilhar alarmes sobre privacidade na rede, homenagens a pessoas doentes e fotos de crianças deformadas. O Almeidinha também distribui bons dias aos amigos com piadas sobre o Verdão (“estude para o vestibular porque vai cair…hihihii”) e mensagens motivacionais. A favorita é aquela sobre amar as pessoas como se não houvesse amanhã, que ele jura ser do Cazuza mas chegou a ele como Caio Fernandes (sic) Abreu.

O Almeidinha gosta também de se posicionar sobre os assuntos que causam comoção. Para ele, a atual onda de violência em São Paulo só acontece porque os pobres, para ele potenciais criminosos (seja assassino ou ladrão de galinha) têm direitos demais. O Almeidinha tem um lema: “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Aliás, é ouvir essa expressão, que ele não sabe definir muito bem, e o Almeidinha boa praça e inofensivo da vizinhança se transforma. “Lógica da criminalidade”, “superlotação de presídios”, “sindicato do crime”, “enfrentamento”, “uso excessivo da força”, para ele, é conversa de intelectual. E se tem uma coisa que o Almeidinha detesta mais que o Lula ou o Mano Menezes (sempre nesta ordem) é intelectual. O Almeidinha tem pavor. Tivesse duas bombas eram dois endereços certos: a favela e a USP. A favela porque ele acredita no governador Sergio Cabral quando ele fala em fábrica de marginais. A USP porque está cansado de trabalhar para pagar a conta de gente que não tem nada a fazer a não ser promover greves, invasões, protestos e espalhar palavras difíceis. O Almeidinha vota no primeiro candidato que propuser esterilizar a fábrica de marginal e a construção de um estacionamento no lugar da universidade pública.

Uma metralhadora na mão do Almeidinha e não sobraria vagabundo na Terra. (O Almeidinha até fala baixo para não ser repreendido pela “patroa”, mas se alguém falar ao ouvido dele que “Hitler não estava assim tão errado” ganha um amigo para o resto da vida).

A cólera, que o fazia acordar condenando o mundo pela manhã, está agora controlada graças aos remédios. O Almeidinha evoluiu muito desde então. Embora desconfiado, o Almeidinha anda numas, por exemplo, de que agora as coisas estão entrando nos eixos porque os políticos – para ele a representação de tudo o que o impediu de ter uma casa na praia – estão indo para a cadeia. Ele não entende uma palavra do que diz o tal do Joaquim Barbosa, mas já reservou espaço para um pôster do ministro do Supremo ao lado do cartaz do Luciano Huck (“cara bom, ajuda as pessoas”) e do Rafinha Bastos (“ele sim tem coragem de falar a verdade”). O Almeidinha não teve colegas negros na escola nem na faculdade, mas ele acha que o exemplo de Barbosa e do presidente Barack Obama é prova inequívoca de que o sistema de cotas é uma medida populista. É o que dizia o “meme” que ele espalhou no Facebook com o argumento de que, na escravidão, o tráfico de escravos tinha participação dos africanos. Por isso, quando o assunto encrespa, ele costuma recorrer ao “nada contra, até tenho amigos de cor (é assim que ele fala), mas muitos deles têm preconceitos contra eles mesmos”.

O Almeidinha costuma repetir também que os pobres é que não se ajudam. Vê o caso da empregada, que achou pouco ganhar vinte reais por dia para lavar suas cuecas e preferiu voltar a estudar. Culpa do Bolsa Família, ele diz, esse instrumento eleitoral que leva todos os nordestinos, descendentes de nordestinos e simpatizantes de nordestinos a votar com medo de perder a boquinha. Em tempo: o filho do Almeidinha tem quase 30 anos e nunca trabalhou. Falta de oportunidade, diz o Almeidinha, só porque o filho não tem pistolão. Vagabundo é outra coisa. Outra cor. Como o pai, o filho do Almeidinha detesta qualquer tipo de bolsa governamental. A bolsa-gasolina que recebe do pai, garante, é outra coisa. Não mexe com recurso público. (O Almeidinha não conta pra ninguém, mas liga todo dia, duas vezes por dia, para o primo de um conhecido instalado na prefeitura para saber se não tem uma boca de assessor para o filho em algum gabinete).

O filho do Almeidinha também é ativista virtual. Curte PlayStation, as sacadas do Willy Wonka, frases sobre erros de gramática do Enem, frases sobre o frio, sobre o que comer no almoço e sobre as bebedeiras com os moleques no fim de semana (segue a página de oito marcas de cerveja). Compartilha vídeos de propagandas de carro e fotos de mulheres barrigudas e sem dentes na praia. Riu até doer a barriga com a página das barangas. Detesta política – ele não passa um dia sem lembrar a eleição do Tiririca para dizer que só tem palhaço em Brasília. E se sente vingado toda vez que alguém do CQC faz “lero-lero” na frente do Congresso. Acha todos eles uns caras fodásticos (é assim que ele fala). Talvez até mais que o Arnaldo Jabor. Pensa em votar com nariz de palhaço na próxima eleição (pensa em fazer isso até que o voto deixe de ser obrigatório e ele possa aproveitar o domingo no videogame). Até lá, vai seguir destruindo placas e cavaletes que atrapalham suas andanças pela cidade.

Como o pai, o filho do Almeidinha tem respostas e certezas para tudo. Não viveu na ditadura, mas morre de saudade dos tempos em que as coisas funcionavam. Espera ansioso um plebiscito para introduzir de vez a pena de morte (a única solução para a malandragem) e reduzir a maioridade penal até o dia em que se poderá levar bebês de oito meses para a cadeia. Quer um plebiscito também para acabar com a Marcha das Vadias. O que é bonito, para ele, é para se ver. E se tocar. E ninguém ouve cantada se não provoca (a favorita dele é “hoje não é seu aniversário mas você está de parabéns, sua linda”. Fala isso com os amigos e sai em disparada no carro do pai. O filho do Almeidinha era “O” zoão da turma na facul).

Pai e filho estão cada vez mais parecidos. O pai já joga Playstation e o menino de 30 anos já fala sobre a decadência dos costumes. Para tudo têm uma sentença: “Ê, Brasil”. Almeidinha pai e Almeidinha filho têm admiração similar ao estilo civilizado de vida europeu. Não passam um dia sem dizer que a vida, deles e da humanidade em geral, seria melhor se o país fosse dividido entre o Brasil do Sul e o Brasil do Norte. Quando esse dia chegar, garantem, o Brasil enfim será o país do presente e não do futuro. Um país à imagem e semelhança de um Almeidinha.

"amor" letal


Algumas reflexões depois de assistir a "Amor", de Michael Haneke. Adolescente, eu já achava bizarra a certeza com a qual alguns amigos se expressavam: "Se eu ficar 'assim'", diziam, "eu me mato na hora. E, por favor, se eu não me matar, seja generoso comigo, mate-me você".

O "assim" que justificava tamanha convicção dependia de relatos, leituras e filmes - ia desde uma impotência sexual talvez passageira (mas que parecia acabar com o charme da vida) até a condição terrificante do protagonista de "Johnny Vai à Guerra", livro e filme de Dalton Trumbo: o soldado Joe, sem braços, sem pernas, sem rosto, parece ser apenas uma carne disforme, enquanto a mente dele continua funcionando.

Eu não concordava com a certeza suicida de meus amigos; imaginava que, antes de decidir me matar, seria bom experimentar minha nova condição durante um tempo. Afinal, em geral, as imperfeições nunca impediram os humanos de viver -ao contrário.

Na época de minha adolescência, não dispúnhamos do exemplo do físico Stephen Hawking ou de Christy Brown, o protagonista de "Meu Pé Esquerdo", de Jim Sheridan. Em compensação, um amigo de meus pais, severamente inválido, disse-me, uma vez: "Você, por exemplo, não pode voar como as aves e é desafinado como um sino quebrado; ou seja, tem coisas que não pode fazer, e você vai procurar o valor de sua vida em outras coisas, que você pode fazer. Comigo não é diferente".

Entendi. Mas me sobrou um certo medo (justamente, pela leitura precoce de "Johnny Vai à Guerra"): poderia acontecer que, de imediato, por causa de um acidente cerebral ou, sei lá, de um incidente de carro, eu me encontrasse numa condição na qual eu não quisesse viver de jeito nenhum e na qual eu não tivesse sequer a capacidade material e mental de pôr fim à minha vida ou de pedir para um próximo que ele me ajudasse a morrer.

Anos atrás, conheci alguém realmente preocupado (muito mais do que eu) com essa eventualidade. Ele envelheceu desesperado, oscilando entre o medo de se matar cedo demais, quando ainda poderia viver um tempo que valesse a pena, e o perigo de esperar além da conta e decidir sair de cena quando ele não tivesse mais condição de se matar ou de pedir a alguém que o matasse.

O mesmo alguém se consolava pensando assim: no caso extremo em que eu não pudesse mais pedir, quem me ama (ou melhor, quem amava aquela pessoa que eu era antes) saberá decidir que eu, embora impedido de me manifestar por minha invalidez, não estou querendo mais viver. Nessa situação, para quem me ama (ou amava, que seja), me ajudar a morrer seria um gesto de amor.

Pois é. Não é tão fácil assim nem tão claro. Na sua coluna de sexta passada, Barbara Gancia escreveu, com razão, que "o fardo de cuidar dos idosos tornou-se um dos maiores dramas da atualidade". Os avanços da medicina fazem que, hoje, sejam cada vez mais numerosos os que cuidam de próximos que sobrevivem transformados pela idade, pela invalidez ou pela demência. E sobrevivem, muitas vezes, tanto irreconhecíveis quanto incapazes de reconhecer os que cuidam deles. Perguntas básicas.

1) Será que o outro que nós amávamos, se ele pudesse escolher, toparia viver como ele está agora?

2) Será que o ser do qual cuidamos hoje é o mesmo que nós amávamos antes do acidente, da invalidez ou da demência? Se ele não for o mesmo, será que esse "novo" ser não tem seus próprios critérios do que é uma vida que valha a pena de ser vivida -critérios diferentes dos do nosso amado de antes?

3) Difícil continuar amando alguém que não nos reconhece mais. Mas será que por isso o deixaríamos morrer - por ele não ser mais aquele ou aquela que amávamos?

4) Por que sempre chega um dia em que ninguém aguenta mais cuidar? É porque o custo (em todos os sentidos) é excessivo e queremos recuperar nossas vidas? Ou é porque é quase impossível fazer o luto de um amado que já se foi, mas continua de corpo presente?

Acontece que alguém se suicide depois de ter matado um amado inválido e demente, de quem não consegue mais cuidar. É mais que uma maneira de evitar a culpa: renunciando a viver sem você, confirmo que foi por amor que matei você - ou melhor, que matei o desconhecido que tinha tomado seu lugar.

Pois é, foi mesmo por amor que matei você? Ou por vingança, por você ter me deixado sozinho?

Seja como for, fica confirmado, embora num sentido inabitual, que o amor resiste dificilmente ao tempo.

- Contardo Calligaris, para a Folha de S. Paulo, 31-01-13 (via)

que a elite brasileira não seja apenas branca


De Marcelo Miterhof, na Folha de S. Paulo, 31-01-13 (leia na íntegra aqui):

No último dia 12, um menino negro de sete anos, filho de um casal de brancos, foi destratado pelo gerente de uma concessionária da BMW no Rio de Janeiro, que ao vê-lo se aproximar teria dito: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja. Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes".

O fato é uma lamentável demonstração de preconceito, mas não é surpreendente. Em razão da notícia, a rádio CBN reapresentou uma reportagem na qual dois repórteres, um negro e outro branco, de idades próximas e vestindo roupas parecidas, testaram o atendimento que receberiam em estabelecimentos comerciais cariocas.

O tratamento dado ao negro foi sistematicamente pior e em boa parte das vezes nem sequer foi atendido. Em uma loja de roupas masculinas, ao branco foi oferecido um terno de maior qualidade, e, ao negro, o mais barato.

O diabo é que os preconceitos se devem a uma poderosa capacidade humana, a de fazer generalizações a partir de experiências limitadas. Poderosa, mas falível.

Preconceitos como o racismo ou o sexismo são frutos de generalizações indevidas e estigmatizadoras. Porém, sem conceitos prévios (preconceitos), que permitam tomar decisões rápidas, teríamos dificuldade para fazer coisas simples, como dirigir ou escolher um restaurante sem ter uma indicação.

(...) No Brasil, ser negro é uma marca de pobreza. Tal generalização não só condiz bem com a realidade como carrega outras generalizações associadas à pobreza. Por exemplo, se num comércio de luxo aparece uma criança pedindo esmolas, é provável que muitos clientes prefiram ver o gerente colocando-a para fora da loja a ter que lidar com o incômodo da pobreza que existe no país.

Os casos destacados não são surpreendentes, portanto. (...) as cotas raciais devem servir para diversificar a elite brasileira, de forma que ela passe a espelhar melhor a pluralidade étnica da população.

Crescimento econômico, redução das disparidades sociais e políticas públicas, como educação boa e universal, são cruciais para o país ser melhor, mas não tendem a tornar a elite mais plural.

(...) a constatação é que o debate das cotas ajudou a colocar o tema racial na agenda brasileira. O percentual de autodeclaração de negros e pardos no censo do IBGE subiu significativamente. Os estudantes cotistas têm em geral bom desempenho acadêmico.

Apesar desses bons resultados, muitos entendem que as cotas racializam o país. Talvez, mas nesse caso é preciso apresentar outras opções para desrracializar a sociedade brasileira, pois isso é um fato, como mostram os exemplos dados.

Outros acreditam que o problema é existirem elites. Como a existência de elites é insofismável, prefiro que a brasileira não seja apenas branca. Tampouco sou contra as elites, que podem ter papéis importantes, como o de garantir que numa democracia a vontade da maioria seja temperada pelos direitos individuais.

Ruim é o elitismo, que ocorre quando a elite acredita que quem atrapalha o país é o seu povo. Para isso, a diversificação da elite é um bom remédio.

O poder econômico é uma arma poderosa contra os preconceitos.

e continuam se esquecendo do povo...


De Sergio Tostes, para O Globo de hoje (via):

Estamos às vésperas de serem eleitos dois políticos, digamos, polêmicos, para presidir as duas Casas do Congresso. Ambos tiveram mandatos conferidos pelo povo. Mas um deles, para não perder o próprio mandato de senador, foi obrigado, em passado recente, a renunciar à presidência da Casa. Com relação ao outro, foram apresentadas documentações indicando o uso de prerrogativas funcionais para obter vantagens para si mesmo ou para pessoas que lhe são muito próximas. É, pois, indispensável indagar: estão eles à altura dos cargos a que estão se candidatando?

A palavra mandato deriva da raiz latina mandatu, que significa delegação e confiança. Pergunta-se: esses dois parlamentares continuam a ter a delegação e a confiança irrestritas do povo brasileiro para presidir as Casas incumbidas de elaborar as leis aplicáveis a toda a população, e mais, se situarem na linha direta de sucessão à Presidência da República?

A esse propósito, tornou-se fato corriqueiro — e nem parece mais causar indignação — que servidores públicos se transformem em homens ricos durante o exercício de mandato popular. É possível que tenham enriquecido de forma digna. Mas essa presunção é iuris tantum, ou seja, o oposto pode ser provado. E não é só no Legislativo que isso acontece. Também no Executivo e no Judiciário, e até em empresas públicas vinculadas ao Executivo.

A Constituição Federal não cria regras distintas de tratamento para cidadãos comuns e cidadãos especiais. O Executivo Federal dispõe de um instrumento prático e efetivo para demonstrar que, no âmbito fiscal, essa dicotomia não existe. A Receita Federal constantemente verifica (e está muito bem aparelhada para isso) as variações da renda dos cidadãos brasileiros. Examina também os sinais exteriores de riqueza, a sua compatibilidade com os recebimentos auferidos e, por óbvio, toma as providências cabíveis quando esses recebimentos não são legítimos. Todos são iguais perante a lei, como estabelece a Carta Magna. Portanto, não há base para tratamento diferenciado entre patrícios e plebeus.

A Secretaria da Receita Federal é órgão do Ministério da Fazenda, este subordinado à Presidência da República. A reinstauração da moralidade pública e privada requer apenas um passo, que, contudo, depende da vontade política da autoridade máxima do País. Como ninguém coloca em dúvida sua honradez e seu caráter, ressoa a pergunta: por que não o faz?

os caminhos para a educação integral


Claudia Costin, no Estadao, 31-01-13 (leia na íntegra aqui):

Quando observamos as características da educação oferecida nos países mais bem colocados no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), um dado chama a atenção: nenhum conta com apenas quatro ou cinco horas de aula. O processo de ensino-aprendizagem demanda tempo.

Por muito tempo se pensou em organizar a jornada escolar de tempo integral nas escolas públicas apenas como forma de atender às necessidades dos pais que trabalham ou ofertar às crianças mais pobres oportunidades de utilização do tempo livre com atividades como artes e esportes, que alunos de classe média recebem naturalmente de suas famílias. Os resultados do Brasil no Pisa nos obrigam a olhar com muita seriedade para os imensos desafios que ainda devem ser enfrentados se nos quisermos colocar não apenas entre as nações com economias forte, mas também entre as que têm chances de construir um futuro melhor para as novas gerações.

Esse olhar implica ir além das expectativas imediatas dos pais e oferecer mais que um espaço seguro ou oportunidades de diversificação de repertório das crianças. Envolve a consolidação do que é básico na educação: desenvolver a capacidade de leitura, interpretação e escrita, raciocínio matemático e o fomento de mentes investigativas. Para isso, além da oferta de mais tempo na escola, deve-se trabalhar com mais tempo significativo de ensino e enriquecimento de repertório. Ou seja, a escolha não é entre oficinas pós-escola ou mais aulas, ambas são importantes.

Ao buscar um salto na qualidade da educação carioca, a partir de 2009, tínhamos consciência de que se deve iniciar o processo de transformação pela definição do que se espera que as crianças aprendam. Isto é, não iniciamos o trabalho fixando metas de escolas em tempo integral, mas estabelecendo um currículo claro e instrumentos pedagógicos a ele associados. (...)

Mas não é suficiente pôr todas as escolas em tempo integral. A carreira do professor precisa ser adequada a essa realidade. Não faz sentido ter um professor dando aulas em três escolas diferentes, ou com uma carga horária de 16 horas, se os alunos ficam o dia todo na escola. A implantação da escola em tempo integral é um bom momento para fazer cada professor se dedicar integralmente a apenas uma delas, com mais tempo para o processo de ensino e para maior interação com os alunos. (...)

Esse novo perfil também inclui elementos do que Edgard Morin chamou de religação dos saberes, a possibilidade de tornar o professor o mediador do processo de aprendizagem, e não mero fornecedor de aulas, dentro de sua especialidade. Um professor mais polivalente, especialista não numa área específica, e sim profundo conhecedor de como o aluno aprende.

Esses cuidados, integrados a uma política educacional não fragmentada, com definição clara do que se espera que a criança e o adolescente aprendam, podem estar no centro do processo do salto de qualidade que o Rio e o País precisam dar. Ainda falta muito, mas já dá para enxergar o caminho, que será longo e não sem percalços.

31 de jan. de 2013

a cultura do estupro


(...) a maior diferença entre os estupradores que estão na cadeia e os que estão soltos é que os primeiros não conseguiram ou não quiseram utilizar apenas táticas que representassem baixo risco. Os estupradores não detectados em sua grande maioria usam pouca ou nenhuma força, em geral usam bebidas alcóolicas e estupram mulheres que eles conhecem. Eles criam situações nas quais nossa cultura vai protegê-los, arrumando desculpas para o comportamento deles e questionando ou negando o relato de suas vítimas. Eu acredito que os estupradores que estão presos são aqueles que usam as táticas que a sociedade está mais disposta a reconhecer como estupro e menos disposta a justificar.

É o modus operandi que mantém tais estupradores não detectados: eles identificaram corretamente uma metodologia que os coloca sob a proteção da cultura de estupro. É improvável que eles sejam condenados porque a história não se encaixa no script [do que convencionamos como estupro "de verdade"]. É improvável que eles sejam presos porque a história não leva a uma condenação fácil. Aliás, é improvável que eles sejam denunciados porque as sobreviventes do estupro sabem que as táticas que estes homens usam as deixam com poucas chances de fazer justiça. Na verdade, tais estupradores podem colocar a vítima em uma situação na qual ela está tão embriagada ou apavorada ou simplesmente isolada e se sentindo derrotada que ela nunca sequer diz “não” e, porque nossa cultura se recusa a reconhecer tais táticas pelo que elas são, até as próprias vítimas podem só chamar de estupro o que aconteceu muito tempo depois do fato, ou talvez nunca.

Não é difícil entender como isso funciona. Uma mulher pode se culpar pelo acontecido, acreditando que “provocou” o estupro por suas roupas, seu comportamento, por ter bebido demais. Ela pode refutar os avanços sexuais de alguém de várias formas, inclusive fisicamente, porém sem jamais dizer a palavra “não” ou usar de força (como, por exemplo, empurrar o agressor), e sentir que a culpa foi sua por não ter deixado “claro o suficiente” que não desejava sexo. Ela pode enxergar o ocorrido como estupro, porém jamais denunciar, seja por vergonha de ter “contribuído” para ele, seja por saber que tem pouca ou nenhuma prova da violência, que a chance de condenação é baixa, que sua vida pessoal e seu comportamento antes, durante e após o crime serão julgados, que ela pode ser vítima de represálias tanto por parte do estuprador como dos amigos em comum que tem com ele, que vão culpá-la por estar “arruinando a vida” de um pobre rapaz por causa de um simples “mal-entendido” ou por um estupro que ela mesma “provocou”. Ela pode não se lembrar do que aconteceu, e não ter certeza se sofreu ou não uma violência, e não procurar saber o que aconteceu por vergonha das circunstâncias, medo de cometer uma acusação falsa ou simplesmente por saber que, ainda que um estupro tenha ocorrido, ela não dispõe de provas. Ela pode sequer saber que certas violências configuram estupro, imaginando, por exemplo, que “sexo” com uma pessoa desacordada não é estupro (é sim), ou que sexo forçado durante um encontro ou por parte de um namorado não é estupro (é sim), ou que não é estupro caso ela tenha, a princípio, consentido com a relação sexual (a partir do momento em que uma pessoa declara não desejar a relação, ou está incapaz de consentir, é estupro). (...)

Excelente texto do Bule Voador. Vale a pena ler na íntegra, aqui. Leia também: O discurso que culpa a vítima, aqui.

quem policia a polícia?


(...) A polícia judiciária, com todos os seus méritos e a dedicação de muitos de seus integrantes, comete erros todos os dias. Ainda que alguns procuradores possam também cometê-los e envolver-se em casos de corrupção, o mesmo ocorre com os juízes, e, em se tratando dos órgãos policiais, não é preciso dizer coisa alguma. O noticiário cotidiano mostra como policiais – civis e militares – integram grupos de bandoleiros e, em nome desses interesses de quadrilha, matam, muitas vezes impunemente.

Esses argumentos não teriam de ser relembrados, se uma Comissão Especial da Câmara não houvesse aprovado, por 14 votos a 2, proposta de emenda constitucional que retira do Ministério Público o poder de investigação. O projeto estapafúrdio é de um parlamentar obscuro, o delegado de polícia Lourival Mendes, do inexpressivo PTdoB do Maranhão. Dois parlamentares – um deles Santana de Vasconcelos, do PR de Minas, e o outro, Fábio Trad, do PMDB do Mato Grosso do Sul, tentaram amenizar o projeto, mantendo a presença subsidiária do MP nas investigações – mas foram vencidos. O lobby corporativo dos delegados de polícia encontrou eco na esperança de impunidade de parcela do Parlamento. A sociedade deve mobilizar-se contra esse conúbio.

O Brasil está caminhando para tornar-se um estado policial, como se ainda estivéssemos no regime arbitrário que se encerrou em 1985, com a memorável campanha das ruas. Em um país em que mais de 10.000 pessoas foram mortas em com base em "autos de resistência à prisão" nos últimos anos, e já se discute o controle externo do judiciário, a polícia não pode ficar sem controle, seja do executivo, seja do MP, até mesmo para combater a corrupção e a tortura. Como ponderava o romano Juvenal em sua pergunta clássica, quis custodiet ipsos custodes, quem policiará a polícia?

- Mauro Santayana, em seu blog (leia na íntegra aqui)

vontade de potência

Via

Eu concordo com quase tudo o que o Drauzio Varella diz. Quase. A defesa apaixonada que ele fez da internação involuntária para dependentes de droga talvez se justifique como discurso de um pai desesperado ou de um médico aflito por não ter como ajudar o paciente, mas deixa de levar em conta alguns elementos importantes.

No afã de tomar uma atitude, Drauzio passa como um trator por cima de dúvidas pertinentes como a eficácia do tratamento compulsório - que tende a ser ainda menor do que as já modestas taxas de sucesso das internações voluntárias - e a carência de vagas no sistema.

Raciocinando por hipótese, já que não existem dados confiáveis, se a chance de livrar-se da dependência é mínima e o tratamento é física e psicologicamente penoso, não podemos nem mesmo afirmar que a recusa é uma decisão irracional. Se vale a analogia com o câncer, quando o prognóstico da doença é muito ruim, alguns pacientes optam, talvez sabiamente, por evitar os efeitos adversos de uma quimioterapia.

E será que faz sentido usar uma vaga com alguém que não a deseja quando existem muitos dependentes menos graves que buscam desesperadamente um lugar para internação e não o conseguem? Qual a política pública mais correta?

Não chego a afirmar que a internação à revelia seja sempre indesejável, mas me parece claro que não pode ser usada como panaceia. Não dá para sair jogando as pessoas em hospitais e clínicas e depois corrigir os exageros, como quer o Drauzio.

A humanidade levou sete milênios para desenvolver mecanismos legais que protegem o cidadão do arbítrio do Estado. A lei nº 10.216, que prevê a internação involuntária, põe esse esforço por água abaixo ao permitir que uma pessoa seja privada de sua liberdade por tempo indefinido sem direito a defensor ou mesmo juiz. Precisamos, no mínimo, reescrever essa monstruosidade jurídica.

- Hélio Schwartsman, para a Folha de S. Paulo, 30-01-13 (via)

Atualização em 09-02-13: Drauzio Varella responde às críticas, inclusive a este artigo de Hélio Schwartsman, aqui.

30 de jan. de 2013

"educamos para um contexto que não existe mais"


"Em tempos de mudança, os que se mantiverem abertos para aprender
vão se apropriar do futuro, mas os que acreditarem saber tudo
estarão bem preparados para um mundo que deixou de existir."

Mais do que mudar a forma como a tecnologia é usada na educação, a proposta de Marc Prensky [leia uma entrevista com o pesquisador de educação e tecnologia aqui] é mudar toda a educação, pois ela é "terrível" em todos os lugares do mundo. (...)

Em tempo: Prensky é "autor do livro Não me atrapalhe, mãe – Eu estou aprendendo!, em que apresenta hipóteses de que os videogames, quando usados de maneira apropriada, são bastante benéficos para os jovens. Pontua que os games ensinam princípios importantes sobre colaboração, tomada de decisões diante de riscos, formulação e execução de estratégias e até complexas decisões morais e éticas. (...) Tem estudado muito sobre novas propostas direcionadas a dar ênfase em habilidades voltadas ao estímulo do senso crítico, aprofundamento do pensamento, sociabilidade e relacionamento humano." (via) Prosseguindo:

O termo "nativos digitais" refere-se às pessoas que já nasceram na era digital, e se opõe aos "imigrantes digitais", ou aqueles que conheceram o mundo antes da internet. (...)

"O mundo todo está em uma má situação em termos de educação", diz, "não são só países como o Brasil, só países em desenvolvimento". "E por que digo que a educação é terrível? Porque educamos para um contexto que não existe mais", afirmou, explicando que hoje em dia não se precisa de matemática, ciência e física como na época em que essas temáticas foram incluídas no currículo. "E ninguém ouve quando alguém diz, 'vamos fazer isso diferente'", completou.

Na visão de Prensky, o foco da educação deveria estar nos "verbos" e não nos "substantivos". "Questionamos se as crianças deveriam usar o PowerPoint, a Wikipédia em sala. Mas isso são 'substantivos'. O que realmente queremos é os 'verbos': apresentar, aprender, ler", explicou. "Os verbos não mudam, queremos os mesmos 'verbos' há mil anos", resumiu, citando pensamento crítico, lógica, criatividade. "E há muitos desses verbos, mas temos que nos perguntar: quais são os 'verbos'-chave? E só depois que soubermos disso, nos perguntamos quais 'substantivos' vamos usar", definiu.

Cérebro estendido
Para responder a essas perguntas, o especialista apresentou o conceito do cérebro estendido, uma soma do cérebro de cada um com as possibilidades oferecidas pela tecnologia. Para o pesquisador, o cérebro é bom em algumas atividades, mas pode se beneficiar das máquinas para, por exemplo, "lembrar tudo ou processar três milhões de dados". Em um dos slides, Prensky resumiu a ideia com uma citação de uma criança de 10 anos: "antigamente as pessoas precisavam saber de cor os números de telefone".

A forma de lidar com esse cérebro estendido seria, pois, combinar as potencialidades das máquinas e dos cérebros. "E acho que é isso que vocês estão fazendo aqui. Vocês são as pessoas que vão criar a inovação", afirmou à audiência do palco principal do Anhembi Parque.

Para falar sobre suas ideias aplicadas à educação, o pesquisador citou um estudante que disse "a coisa mais inteligente que já ouviu": que professores entendem a tecnologia como ferramentas, enquanto estudantes a entendem como uma fundação, uma base que se estende sob o restante.

Trivial x poderoso
Prensky também falou de como vê a tecnologia envolvida na educação de duas formas, uma "trivial" e a outra "poderosa". "A primeira é fazer as mesmas coisas que sempre fizemos, em novas formas - sempre escrevemos, agora temos um blog ou usamos teclado. Eu chamo de trivial, não porque não é importante, mas porque já fazíamos antes. E há as coisas que não podíamos fazer, que chamo de poderosas", explicou citando chamadas de voz por IP, tweets, impressão 3D, inteligência artificial, jogos, simulações e robótica entre as formas "poderosas" de a tecnologia influenciar a educação.

"Mas por mais que gostemos de tecnologia, é preciso lembrar que há coisas muito importantes na educação que ela não faz", destacou, citando empatia, escolha e paixão. Para ele, essas são as coisas que o cérebro faz melhor, e que é nisso que os professores devem se focar, adaptando o "como" ensinam.

E é preciso adaptar também, segundo Prensky, mudar o "o quê" se ensina. Ele defende que no novo modelo de educação os jovens sejam "nós da rede", que possam se conectar o máximo possível e que os professores orientem o percurso, fazendo, de acordo com o pesquisador, o que cada um faz melhor: os estudantes, se conectar e achar os conteúdos, e os professores, questionar, orientar e avaliar.

"Muito se diz que a escola precisa ensinar 'o básico' para as crianças, mas 'o básico' também está mudando", defendeu, apresentando sua proposta do que seria o novo "básico" da educação formal, que ele chamada de eTARA, sigla em inglês para o conjunto de pensamento, ação, relacionamento e conquista efetivos. Programar, na lista de Prensky, é parte de pensamento efetivo, assim como ética de relacionamento, e empreendedorismo de ação.

O pesquisador finalizou incentivando os empreendedores e geeks que o ouviam a criar aplicativos, programas e outras ferramentas para mudar a forma do ensino usando a tecnologia.

(Deborah Salves, para o Terra)

* * *

Atualização 31-01-13:

Além da entrevista do Estadão (aqui), vale conferir a palestra na íntegra (via):

o ensurdecedor silêncio da grande mídia brasileira


Sob o ensurdecedor silêncio da grande mídia brasileira, foi divulgado em Bruxelas, na terça-feira (22/1), o relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, comissionado pela vice-presidente da União Europeia, Neelie Kroes, encarregada da Agenda Digital [ver aqui a íntegra do relatório, acesso em 23/1/2013].

Preparado por um grupo de alto nível (HLG) (...) o relatório faz trinta recomendações sobre a regulamentação da mídia (...).

Fundamento de todo o relatório são os conceitos de liberdade de mídia e pluralismo. Está lá:
“O conceito de liberdade de mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão, mas não é idêntico a ela [grifo meu]. A última está entronizada nos valores e direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm o direito à liberdade de expressão. Este direito inclui a liberdade de ter opiniões, de transmitir (impart) e receber informações e ideias sem interferência da autoridade pública e independente de fronteiras’ (...). 
“Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da propriedade. Ele inclui muitos aspectos, desde, por exemplo, regras relativas a controle de conteúdo no licenciamento de sistemas de radiodifusão, o estabelecimento de liberdade editorial, a independência e o status de serviço público de radiodifusores, a situação profissional de jornalistas, a relação entre a mídia e os atores políticos etc. Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder [formador de opiniões] dominante.”
Encontram-se no relatório propostas como: (1) a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias; (2) o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial ou, alternativamente, por um centro independente ligado à academia, e a publicação regular de relatórios que seriam encaminhados ao Parlamento para eventuais medidas que assegurem a liberdade e o pluralismo; (3) a total neutralidade de rede na internet; (4) a provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo; (5) a existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações indevidas.

Pelo histórico de feroz resistência que encontra entre nós, vale o registro uma proposta específica. Após considerações sobre o reiterado fracasso de agências autorreguladoras, o relatório propõe:
“Todos os países da União Europeia deveriam ter conselhos de mídia independentes, cujos membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade, declarações de conflito de interesse etc. Os conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como a imposição de multas, determinar a publicação de justificativas [apologies] em veículos impressos ou eletrônicos, e cassação do status jornalístico.”
A publicação de mais um estudo oficial sobre regulamentação da mídia, desta vez pela União Europeia, menos de dois meses depois do relatório Leveson na Inglaterra, revela que o tema é pauta obrigatória nas sociedades democráticas e não apenas em vizinhos latino-americanos como a Argentina, o Uruguai e o Equador, mas, sobretudo, na Europa.

No Brasil, como se sabe, “faz-se de conta” que não é bem assim e o tema permanece “esquecido” pelo governo, além de demonizado publicamente pela grande mídia como ameaça à liberdade de expressão.

Quem se beneficia com essa situação? Até quando seguiremos na contramão da história?

- Venício A. de Lima, jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010).

[Leia na íntegra no Observatório da Imprensa, aqui.]

todo mundo é trans


Ia publicar ontem (aliás, aqui tem um belo índice para as postagens relativas ao dia da visibilidade trans*), mas gostei tanto deste texto da Marilia Coutinho que achei mais justo abrir um espaço só pra ele:

(...) Enquanto o outro é um “outro” entre aspas, brilhando feito um E.T. com sua alteridade em primeiro plano, não funciona. Todo mundo concorda que não é legal exterminar pessoas que estão tocando sua vida só porque não têm a mesma etnia, cor de pele, idioma ou religião que a gente. (...)

Eu proponho um exercício de reflexão sobre transgeneridade. Vamos assumir alguns pressupostos aqui:

1. Os papéis de gênero são socialmente construídos e são difundidos pelas instâncias de educação e inculcação ideológica (escola, igreja e, hoje, sobretudo o marketing da indústria da beleza);
2. Para funcionar, eles precisam ser “tipos ideais” bem claros: temos dois gêneros aceitáveis, cada um correspondente a um dos sexos biologicamente herdados e predominantes, cada um associado a um conjunto de elementos comportamentais e valorativos;
3. Estes elementos comportamentais e valorativos vêm em caixinhas de repertórios estéticos, atitudinais, gestuais, ocupacionais, entre outras (caixinhas);
4. Para funcionar mesmo, é importante que as pessoas acreditem que tudo isso foi dado por uma divindade (“Deus fez assim”) ou pela Natureza (“a Natureza fez assim”);
5. A transgeneridade consiste em questionar este último item, juntar com o primeiro e propor uma construção social alternativa, onde as escolhas do sujeito se superponham às imposições sociais dominantes externas.

Se assumirmos esses pressupostos, @s travestis e transgêner@s são as pessoas que manifestam uma expressão ao mesmo tempo mais óbvia e consciente de algo que é muito mais disseminado e comum. No fundo, ninguém consegue se adequar plenamente aos papéis de gênero, por definição: eles são tipos ideais!

Admito que é esquisita essa idéia. Requer imaginar aquele tio careta e machista sendo um transgênero: não combina. No entanto, no dia em que ele se emocionar no escritório e for repreendido pela “viadagem”, o que ele está sofrendo não é só uma ação homofóbica. Ao considerar o comportamento dele uma “viadagem”, na verdade o que as pessoas estão apontando é a transgressão da fronteira de gênero: “opa, cuidado, desse lado de cá estão os homens, lá ficam as mulheres. Pare com essa choradeira porque você está dando nó na nossa cabeça”.

Isso acontece o tempo todo, todos os dias. Se você é um cara hetero, pense nas vezes em que, mesmo de brincadeira, apontaram uma viadagem sua? E você, mulher hetero, não acredito que nunca tenham sugerido um comportamento “mais feminino” para você.

Transgeneridade é transgressão de papéis estereotipados de gênero. Quando mais gente conseguir enxergar dessa maneira, e não como uma esquisitisse de uns caras e umas minas que se vestem como palhaços, ou umas aberrações de uns caras e umas minas que se submetem a cirurgias mutilatórias, tudo entra em perspectiva (e aí eles não são palhaços e as cirurgias não são mutilatórias). Esses caras e essas minas são você e eu, sua tia e o moço da rua. Somos todos nós que, em maior ou menor grau, com maior ou menor consciência, desejo e serenidade, transgredimos a pior de todas as imposições externas: a prisão mental dos papéis de gênero.

Somos todos transgêneros e vamos dar um pau na transfobia.

o cuidado de si mesmo, segundo foucault

"Rede de intrigas", Sidney Lumet

Poucos meses antes da morte de Michel Foucault, em 1984, publicou-se pela primeira vez esta entrevista, na qual – em diálogo com o filósofo cubano Raúl Fornet-Beancourt [com Helmut Becker e Alfredo Gómez-Muller] – explicou e esclareceu erros sobre conceitos centrais de sua pesquisa: a noção de “cuidado de si mesmo”, os “jogos de verdade”, as “práticas de liberdade”, a diferença entre poder e dominação, e outros mais. Os fragmentos da entrevista com Foucault, realizada em 20 de janeiro de 1984 (Revista Concordia, 1984), são publicados no jornal Página/12, 24-01-2013.* A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista, reproduzida aqui via IHU.

Produziu-se um salto entre sua problematização anterior e a atual, a partir do conceito de “cuidado de si mesmo”?

Eu havia enfocado o problema das relações existentes entre o sujeito e os jogos de verdade a partir de práticas coercitivas, tais como a psiquiatria e o sistema penitenciário, ou sob a forma de jogos teóricos ou científicos, tais como a análise das riquezas, da linguagem ou do ser vivente. Em meus cursos, no Collège de France, tentei captar este problema por meio do que poderia se denominar uma prática de si mesmo, que em meu parecer é um fenômeno importante em nossas sociedades, desde a época greco-romana, apesar de não ter sido estudado. Estas práticas de si mesmo tiveram na civilização grega e romana uma importância e, sobretudo, uma autonomia muito maiores do que tiveram posteriormente, quando se viram assumidas, em parte, por instituições religiosas, pedagógicas, de tipo médico e psiquiátrico.

Trata-se de um trabalho de alguém sobre si mesmo, que pode ser compreendido como uma determinada liberação, como um processo de libertação.

No que se refere a isto, teríamos que ser um pouco mais prudentes. Sempre desconfiei um pouco do tema geral da libertação, na medida em que, caso não o tratemos com algumas precauções e no interior de determinados limites, corre-se o risco de recorrer à ideia de que existe uma natureza ou um fundo humano que tem sido mascarado, alienado ou aprisionado em e por mecanismos de repressão, como consequência de um determinado número de processos históricos, econômicos e sociais. Caso seja aceita esta hipótese, bastaria saltar estes bloqueios repressivos para que o homem se reconciliasse com ele próprio, para que se reencontrasse com sua natureza ou retomasse o contato com sua origem, restaurando uma relação plena e positiva com ele próprio.

Parece-me que este pensamento não pode ser admitido de qualquer jeito, sem ser previamente submetido ao exame. Com isto não quero dizer que a libertação, ou melhor, determinadas formas de libertação, não existam. Quando um povo colonizado tenta se libertar de seu colonizador, estamos diante de uma prática de libertação em sentido estrito. Porém, sabemos muito bem que, também neste caso concreto, esta prática de libertação não basta para definir as práticas de liberdade que serão a continuidade necessária para que este povo, esta sociedade e estes indivíduos possam definir formas válidas e aceitáveis de existência ou formas mais válidas e aceitáveis naquilo que se refere à sociedade política. Por isso, insisto mais nas práticas de liberdade do que nos processos de libertação que, é preciso dizer mais uma vez, possuem seu espaço, mas que não podem por eles mesmos, em minha opinião, definir todas as formas práticas de liberdade. Estamos diante de um problema do qual tenho me ocupado, justamente na relação com a sexualidade. Faz sentido dizer “libertemos nossa sexualidade”? O problema não consiste mais em tentar definir as práticas de liberdade, por meio das quais poderia se definir o que é o prazer sexual, as relações eróticas, amorosas e passionais com os outros? Este problema ético, da definição das práticas de liberdade, parece-me muito mais importante do que a afirmação, um tanto batida, de que é necessário libertar a sexualidade ou o desejo.

O exercício das práticas de liberdade não exige um grau de libertação?

Sim, é claro. Por isso, é preciso introduzir a noção de dominação. As análises que tento fazer se centram fundamentalmente nas relações de poder. E entendo por relações de poder algo diferente dos estados de dominação. As relações de poder possuem uma extensão extraordinariamente grande nas relações humanas. Isto não quer dizer que o poder político esteja em todas as partes, mas sim que nas relações humanas se imbrica todo um feixe de relações de poder que podem ser exercidas entre os indivíduos, no interior de uma família, numa relação pedagógica, no corpo político, etc. A análise das relações de poder constitui um campo extraordinariamente complexo. E esta análise se encontra, às vezes, com aquilo que podemos denominar fatos ou estados de dominação, em que as relações de poder ao invés de serem instáveis e permitir aos diferentes participantes uma estratégia que as modifiquem, encontram-se bloqueadas e fixadas.

Quando um indivíduo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, fazendo destas relações algo imóvel e fixo e impedindo a mínima reversibilidade de movimentos – mediante instrumentos que podem ser tanto econômicos como políticos ou militares -, nós nos encontramos diante do que podemos denominar um estado de dominação. É correto que numa situação deste tipo as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas unilateralmente ou são recortadas e extraordinariamente limitadas. Estou de acordo com você que a libertação é, em certas ocasiões, a condição política ou histórica para que possam existir práticas de liberdade. Caso considerarmos, por exemplo, a sexualidade, é evidente que foi necessário uma série de libertações em relação ao poder do macho, que foi preciso se libertar de uma moral opressiva que diz respeito tanto à heterossexualidade como à homossexualidade. Contudo, esta libertação não permite que surja uma sexualidade plena e feliz, em que o sujeito teria alcançado, no final, uma relação completa e satisfatória. A libertação abre um campo para novas relações de poder, que é necessário controlar através das práticas de liberdade.

Em si mesma, a libertação não poderia ser um modo ou uma forma de prática da liberdade?

Sim, num determinado número de casos é assim. Existem casos em que a libertação e a luta pela libertação são indispensáveis para a prática da liberdade. No que se refere à sexualidade, por exemplo – e falo isto sem o desejo de polemizar, já que não gosto de polêmicas -, acredito que na maior parte dos casos são infecundas. Existe um esquema reichiano, derivado de certa maneira de ler Freud, que supõe que o problema é apenas de libertação. Para falar de uma forma bem esquemática: existiria o desejo, a pulsão, a proibição, a repressão, a interiorização, e o problema se resolveria fazendo saltar todas estas proibições, ou seja, liberando-se. Neste esquema – eu sou consciente de que faço caricaturas de posições mais interessantes e matizadas de numerosos autores – está totalmente ausente o problema ético da prática da liberdade. Como a liberdade pode ser praticada? No que se refere à sexualidade, é evidente que é apenas a partir da liberação do próprio desejo que alguém saberá conduzir-se eticamente nas relações de prazer com os outros.

Você disse que é necessário praticar a liberdade eticamente.

Sim, porque na realidade o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática reflexiva da liberdade? A liberdade é a condição ontológica da ética; mas a ética é a forma reflexiva que adota a liberdade.

Aquilo que se executa no cuidado de si mesmo é a ética?

O cuidado de si mesmo foi, no mundo greco-romano, o modo mediante o qual a liberdade individual, ou até certo ponto a liberdade cívica, foi pensada como ética. Se você consultar toda uma série de textos, que vão desde os primeiros diálogos platônicos até os grandes textos do estoicismo tardio – Epiteto, Marco Aurélio, etc. –, poderá comprovar que este tema do cuidado de si mesmo realmente atravessou toda a reflexão moral. Ao contrário disto, é interessante ver como em nossas sociedades o cuidado de si mesmo se converteu, e é muito difícil saber exatamente desde quando, em algo muito suspeito. Ocupar-se de si mesmo foi, a partir de um determinado momento, quase espontaneamente denunciado como uma forma de egoísmo ou de interesse individual, em contradição com o interesse que é necessário prestar aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Isto ocorreu durante o cristianismo, mas não me atreveria afirmar que se deva pura e simplesmente ao cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois no cristianismo procurar a salvação é também uma maneira de cuidar de si mesmo. Porém a salvação se efetua no cristianismo por meio da renúncia de si mesmo. Produz-se assim um paradoxo do cuidado de si no cristianismo, mas este é outro problema.

Para voltar à questão que você colocava, acredito que entre os gregos e os romanos, sobretudo entre os gregos, para ser bem conduzido, para praticar a liberdade como era esperado, era necessário se ocupar de si, cuidar de si, isto, por sua vez, para se conhecer e para se formar, para se superar a si mesmo, para controlar os apetites que poderiam nos dominar. A liberdade individual era para os gregos algo muito importante. Não ser escravo (de outra cidade, dos que os rodeiam, dos que os governam, de suas próprias paixões) era um tema fundamental. A preocupação pela liberdade foi um problema essencial, permanente, durante os oito grandes séculos da cultura clássica. Existiu, então, toda uma ética que girou em torno do cuidado de si, o que proporciona para a ética clássica sua forma tão particular. Não pretendo afirmar com isto que a ética seja o cuidado de si, mas que, na Antiguidade, a ética, enquanto prática reflexiva da liberdade, girou em torno deste imperativo fundamental: “cuida de ti mesmo”.

Imperativo que implica a assimilação do logos, das verdades.

Sem dúvida, não se pode cuidar de si mesmo sem se conhecer. O cuidado de si é o conhecimento de si – num sentido socrático-platônico -, mas é também o conhecimento de certo número de regras de conduta ou de princípios que são, por sua vez, verdades e prescrições. Trata-se de operar de tal modo que estes princípios digam, em cada situação e de certo modo espontaneamente, como se deve se comportar. Encontramos aqui uma metáfora que não provem dos estóicos, mas de Plutarco, que diz: “É necessário que você tenha aprendido os princípios de uma forma tão constante que, quando seus desejos, seus apetites, seus medos se despertarem como cães que ladram, o Logos fale em você como a voz do amo, que com um só grito sabe calar os cães. É esta a ideia de um Logos que de certa maneira poderá funcionar sem que você tenha que fazer nada: você terá se convertido no Logos ou o Logos terá se convertido em você mesmo”.

Poderíamos voltar à questão das relações entre a liberdade e a ética. Quando você afirma que a ética é a parte reflexiva da liberdade, quer dizer que a liberdade pode cobrar a consciência de si mesma como prática ética? É em seu conjunto e sempre uma liberdade, para dizer assim, moralizada ou é necessário um trabalho sobre si mesmo para descobrir esta dimensão ética da liberdade?

Os gregos problematizavam sua liberdade, a liberdade do indivíduo, para convertê-la num problema ético. Porém, a ética no sentido em que os gregos podiam entendê-la, o ethos, era a maneira de ser e de conduzir-se. Era certo modo de ser do sujeito e uma determinada maneira de se comportar que se tornava perceptível aos demais. O ethos de alguém se expressava por m de sua forma de vestir, de seu aspecto, de sua forma de andar, por meio da calma com a qual enfrentava qualquer acontecimento, etc. Nisto consistia para eles a forma concreta da liberdade. É assim que problematizavam sua liberdade. Aquele que possui um ethos nobre, um ethos que pode ser admirado e citado como exemplo, é alguém que pratica a liberdade de uma determinada maneira. Não acredito que seja necessária uma conversão para que a liberdade seja pensada como ethos, mas que a liberdade é diretamente problematizada como ethos. Contudo, para que esta prática da liberdade adote a forma de um ethos que seja bom, belo, honorável, estimável, memorável, e que possa servir de exemplo, é necessário todo um trabalho sobre si mesmo.

(*) A versão completa pode ser consultada em “La ética del cuidado de uno mismo como práctica de la libertad”.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...