8 de dez. de 2012

de que serve esta onda que quebra e o vento da tarde...


-César, eu já fumei um maço de cigarro, pode?
-Não pode, não.
-Diz a ela que ela já está crescida, pode fumar à vontade. Eu te dei a piteira, com a piteira filtra tudo.
-Mas fica pernóstico.

Via

aos humoristas do brasil


"[E]sse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram racistas, gente. Pode ter certeza que seus tataravôs já comparavam negros com macacos. Aposto como seus tataravôs já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia teve em ser estuprada. Vocês não são moderninhos, não são ousados, não são criativos. Vocês estão apenas seguindo uma tradição."

De Alex Castro, para o Papo de Homem (leia na íntegra aqui):

(...) Em teoria, o humor é simples: você cria uma expectativa, e depois a subverte.

Para o humor poder existir, são necessários uma série de pressupostos culturais coletivos, compartilhados pelo humorista e seu público que, convenhamos, muitas vezes são sim machistas, homofóbicos, racistas.

A piada “Sabe como afogar uma loira? Coloca um espelho no fundo na piscina!” só funciona porque tanto humorista quanto platéia “sabem” que loiras são fúteis, vaidosas e burras. Se não compartilhassem esse “conhecimento”, não é nem que a piada não seria engraçada: ela faria tão pouco sentido que não seria nem mesmo coerente enquanto narrativa.

Naturalmente, por esse mesmo motivo, o humor é sempre local: para pessoas de outras culturas, com outros pressupostos culturais compartilhados, a historinha também não faria sentido – pois não teriam a chave pra decodificar a piada, ou seja, que loiras “são burras, fúteis e vaidosas”. (Não são.)

(...) O humor viria de uma violação da ordem estabelecida, seja através de dignidade pessoal (tropeçar na casca de banana, deformidades físicas), normas linguísticas (gago, fanho, sotaques), normais sociais (comportamentos inusitados), e até mesmo normas morais (bestialidade, etc), mas que ao mesmo tempo não representasse uma ameaça ao público ou à sua visão de mundo.

Essa última parte é talvez a mais importante: a violação não pode ameaçar ou contradizer a visão de mundo do público, senão ela nem será compreensível.

Usando o mesmo exemplo acima, até dá pra fazer uma piada sem loiras, mas se a sua piada incluir uma loira, ela vai ter que ser burra, mesmo contra sua vontade, pois assim que mencionar “loira” o público já vai imaginá-la “burra“, mesmo se você acrescentar que é uma loira física nuclear ganhadora do Nobel. Nesse último caso, o público certamente pensaria que a piada era justamente sobre como a loira burra conseguiu virar física nuclear ganhadora do Nobel. Mas não dá pra desfazer a associação loira + burra.

(...) se é impossível você humorista acabar sozinho com o estereótipo da loira burra, é possível não reforçá-lo:

Basta não fazer piadas de loira burra.

Eu sei, eu sei. O estereótipo da loira burra é até inofensivo. É verdade, algumas das pessoas mais inteligentes que já conheci eram lindas loiras que enfrentavam dificuldades constantes de serem levadas a sério no ambiente de trabalho, mas e daí, né? No cômputo geral das coisas, é um pequeno problema.

Fazer rir utilizando esses estereótipos (a loira burra, o preto macaco, a bicha travesti, etc) é muito fácil. E eu não estou dizendo que vocês não podem não. O país é livre e temos liberdade de expressão justamente para isso.

Mas dá pra fazer diferente (...).

“Patrulha” são soldados armados que podem te matar se você os desobedecer.

Torcer o nariz para as piadas racistas, homofóbicas ou machistas de um comediante não é “patrulha”.

É o público exercendo pacificamente sua liberdade de expressão de considerar babaca um comediante que faça piadas racistas, homofóbicas ou machistas.

Esses pobres humoristas “perseguidos” que reclamam da “patrulha politicamente correta” não estão defendendo a liberdade de expressão: liberdade de expressão de verdade é o cara poder fazer piada sobre mulher estuprada e nós podermos criticá-lo por isso.

Na verdade, a liberdade que querem esses paladinos do “politicamente incorreto” é a liberdade de falar os maiores absurdos sem nunca serem criticados.

[E mais: politicamente incorreto nos olhos dos outros é refresco]

Aí é fácil, né? Assim eu também quero.

(...) Falar besteira, qualquer criança fala.

Adulto é quem sabe que falar significa se abrir para a possibilidade de ouvir a resposta. Adulto é quem entende que ele tem a mesma liberdade de falar que seus críticos tem de criticá-lo. (...)

Vocês, humoristas, são livres para fazer piadas sobre o que quiserem. Mas também são cidadãos dotados de consciência. Os números da violência contra a mulher são impressionantes. Somos o país que mais mata gays. Nossos jovens negros são vítimas da maioria desproporcional dos homicídios.

A escolha é nossa, tanto humoristas quanto consumidores e repassadores de humor: queremos ser parte da solução ou parte do problema? Queremos estar do lado de quem mata ou estender a mão à quem está morrendo?

Essa discussão não é abstrata. Não estamos falando sobre princípios filosóficos. Tem gente morrendo AGORA. (...)

E, se você acha que a “patrulha do politicamente correto está insuportável”, assista agora o documentário abaixo.

- Alex Castro (leia na íntegra aqui).

* * *

um pouco de você

rede, socialidade e os 'hikikomori'



No dia 29 de novembro, o L'Osservatore Romano publicou um artigo de Christian Martini Grimaldi intitulado "Entre realidade e preconceito" (leia aqui), dedicado às relações humanas dentro e fora da rede. (...)

O artigo começa a partir de uma frase minha que, na realidade (não se diz isso no artigo), parte de um artigo meu publicado no jornal Avvenire. Nessa frase, eu digo que, enquanto se mantiver o dualismo entre a vida offline e a vida online – considerando banalmente a primeira como a vida "verdadeira" e a segunda como a vida irremediavelmente "falsa" –, se multiplicarão as alienações. Enquanto se disser que, para viver relações reais é preciso fechar as relações em rede, se confirmará a esquizofrenia de uma geração que vive o ambiente digital como um ambiente que vive de banalidades efêmeras.

A mensagem que eu tentava comunicar é que a vida é uma só, seja ela vivida no ambiente físico, seja ela vivida no ambiente digital. A rede não é uma realidade paralela, mas é chamada a ser um espaço antropológico interconectado radicalmente com os outros espaços da nossa vida.

O que faz o autor do artigo do L'Osservatore Romano? Ele escreve que não, a rede, ao invés, é somente uma "bolha isenta de realismo físico", que em rede, portanto, acabamos ou acabaremos todos sendo "hikikomori", ou seja, aqueles japoneses que vivem isolados do resto do mundo, como demonstrado por uma série de fatos e síndromes que Grimaldi anota, concluindo que, no fim, substancialmente, é tudo culpa da rede.

Mas como ainda é possível raciocinar desse modo, eu me pergunto? O que faz o autor do artigo? Parte da patologia e chega acriticamente às suas conclusões. Em suma, é como se eu falasse dos criminosos (da vida" real ") e, então, deduzisse que o mundo é um lugar mau, onde todos os homens acabam sendo pessoas depravadas. O autor do artigo esquece toda a solidariedade que se expressa em rede, a open source, a troca virtuosa, a capacidade de compartilhamento positivo... Para ele, tudo isso não existe: todos acabaremos sendo hikikomori.

(...)

Eu acredito que não se deve atribuir à rede o que, ao invés, depende dos nossos limites relacionais e humanos, e que transferimos para a web exatamente como nos outros ambientes que frequentamos offline. Atribuir à web as culpas que são nossas é uma forma de desresponsabilização, de inaceitável posição de determinismo tecnológico. Essa exteriorização do negativo me parece sem sentido.

A web não nos "determina", ao contrário, e pode ser "habitada". Obviamente, porém, o habitar não pode prescindir da sabedoria de uma adaptação (nem sempre fácil) ao ambiente em que, pouco a pouco, se inscrevem os próprios valores. É uma espécie de domesticação do espaço. (...)

(...)

O artigo do L'Osservatore Romano, dizendo que todos acabaremos sendo "hikikomori", parece inverter em 180 graus essa perspectiva. (...) As redes sociais como "porta" e "espaço", isto é, um espaço de experiência. O seu convite, portanto, é de ampliar os nossos horizontes, ouvir os desejos profundos que o ser humano hoje já expressa muito bem também na rede, lugar onde se faz experiência do real. Estamos a anos-luz de distância de posições acríticas de dualismo digital como as expressas pelo artigo em questão.

(...) É dessa sabedoria que se precisa, não de pessimismo capaz apenas de criar mais esquizofrenias. É uma tarefa que requer responsabilidade. Aquela responsabilidade que não pode ser obscurecida por, a meu ver, posições inaceitáveis de determinismo tecnológico, como as expressas por Grimaldi.

E, além disso, para que servem artigos desse tipo? Para fazer uma laudatio temporis acti, um elogio dos belos tempos que já se foram? (...)

- Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, ex-professor da Universidade Gregoriana. Artigo publicado originalmente no blog Cyberteologia, 02-12-2012, e traduzido por Moisés Sbardelotto para o IHU (aqui).


7 de dez. de 2012

os velhos nada têm a dizer


Quando o envelhecimento e a morte deixam de ser simbolicamente incorporados na cultura por meio de religiões e filosofias, o discurso midiático parece insistentemente querer demonstrar que a velhice não existe, que é tudo uma questão de atitude psicológica. Gerontologia, geriatria, engenharia genética e todo um aparato tecno-científico é atualmente mobilizado para, associado à mídia, apresentar sensacionais “lições de vida” e “superações”: idosos em praticas e comportamentos análogos ao dos jovens criando não apenas uma aversão aos processos naturais de envelhecimento mas, principalmente, a crise da função dos idosos como “elo geracional”: a transmissão de sabedoria e conhecimento acumulados em uma existência.

Já se tornou um lugar comum nas “notícias diversas” (amenidades que em geral encerram os últimos blocos de telejornais) as chamadas “lições de vida” que idosos nos ensinariam: um senhor de 70 anos que pratica maratonas; uma senhora que aos 75 anos retoma a sala de aula para concluir o ensino médio pensando na universidade e nova carreira profissional; outro senhor de 65 anos diz orgulhar-se por aventurar-se no “mundo das atividades físicas”: “faço atividades físicas com força na academia para fortalecer a musculatura e garantir que tão cedo eu não vou ter que ‘pendurar as chuteiras’”, brinca.

Assim como aquela polêmica campanha publicitária de um banco que afirmava que “nem parece banco”, a visão midiática da terceira idade parece ser essa: “nem parece velho”. O discurso midiático parece insistentemente querer demonstrar que a velhice não existe, que é uma questão de atitude psicológica. Em nome de lições sobre “qualidade de vida” vemos imagens de idosos parecidos com jovens ou querendo provar que são fisicamente capazes, tanto quanto eles.

Por isso, a ciência vai mobilizar uma serie de saberes especializados (geriatria, gerontologia, engenharia genética, tanatologia, criônica etc.) para travar uma verdadeira luta para aliviar ou abolir os estragos do tempo.

Em culturas tradicionais onde a velhice e a morte eram simbolicamente incorporados no dia-a-dia, os idosos sempre foram “elos geracionais” como transmissores de um saber acumulado, conhecimento e sabedoria. Colocados em posição de destaque na sociedade, o natural declínio físico era compensado pela sabedoria, amor e trabalho unidos em uma preocupação com a posteridade na tentativa de equipar os mais jovens para levar adiante as tarefas dos mais velhos.

Hoje toda a indústria da informação e entretenimento faz o caminho inverso: não apenas a velhice é negada por “lições de vida” e todo um aparato terapêutico renovado a cada dia pela indústria farmacêutica como a própria função de “elo geracional” é esquecida: eles nada têm a dizer para as câmeras, a não ser negar a si mesmos numa tentativa a todo custo de aparentar uma atitude positiva e ficar parecidos com os mais jovens.

Eles foram até elevados à categoria etnográfica no mercado: são agora os “Young Seniors”, ávidos por consumo de gadgets que os tornem jovens. O que há por trás dessa aversão não só dos processos de envelhecimento como, principalmente, do esquecimento da função de elo geracional dos mais velhos?

Desde que a General Motors inventou a obsolescência planejada na década de 1920, o “velho” passou a ser um entrave para a reposição acelerada de produtos no mercado e a maximização dos lucros. Toda a indústria da moda e publicidade vai ao longo das décadas posteriores glamorizar o “novo” e a “novidade” como moralmente bons, prazerosos e estimulantes. O ápice dessa verdadeira engenharia de opinião pública foi a construção da cultura pop e jovem nas décadas de 1950-60. “Não confie em ninguém com mais de 30”, dizia o desafiante lema jovem da contracultura: os “mais velhos” (pais e autoridades) passaram a ser encarados como “quadrados”, ultrapassados e intrinsecamente conservadores.

Se isso foi positivo em um momento histórico como revolução e crítica, por outro lado seus líderes não perceberam a ambiguidade dessa nova cultura: seria a base imaginária (ao lado do crédito) de toda a descartabilidade e hedonismo necessários para a aceleração da sociedade de consumo.

(...) O sofrimento central da velhice (o fato de que vivemos vicariamente em nossos filhos ou em gerações futuras) perde suas formas sublimatórias religiosas ou filosóficas como o amor, a sabedoria e o conhecimento, formas que nos faziam se reconciliar com a nossa própria substituição.

(...) Na atualidade experiência e sabedoria são menos ensinamentos a ser passados para uma geração futura do que uma histérica lição de vida performática: a de ser um velho de “cabeça jovem em um corpo são”, cujo único conselho é o de fazer “young seniors” transformarem-se em ávidos consumidores de mercadorias terapêuticas que ajudem a negar a si mesmos como testemunhas vivas do tempo e de uma sabedoria que se perdeu.

- Wilson Roberto Vieira Ferreira

Leia na íntegra aqui

o comunismo ético de oscar niemeyer


"Na verdade, se uma ideia pudesse sintetizar a obra de Niemeyer, talvez fosse a ausência de medo. Nossas cidades parecem ter medo do vazio, dos espaços infinitamente abertos, da visão desimpedida, das formas improváveis que têm a força de dobrar o concreto armado, ou seja, da inventividade que parece se comprazer em negar toda a forma que se põe como necessária. Niemeyer não tinha medo de nada. Quantas vezes ele deve ter exasperado engenheiros que viam suas formas e pensavam: 'Mas isso não pode ficar suspenso dessa forma. Mas não é possível deixar isso em pé'. E pur si muove!, como dizia Galileu."

- Vladimir Safatle, aqui

* * *

De Leonardo Boff, no Adital (leia na íntegra aqui):

Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?

Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.

Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: "mas que significa isso?” Eu respondi: "Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: "que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: "É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: "a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: "diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino: ”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso "Gari Sorriso: "Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.

Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: "Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: "na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”

Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele "a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picasso, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.

Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. "O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, "o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.

Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que "os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico, mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: "aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.

(...) A vida não está destinada a desaparecer na morte, mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizou. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.

Em tempo: Boff não gostou nem um pouco da voz dissonante de um blogueiro da revista Veja, que chamou Niemeyer de "idiota". Leia aqui.

* * *

"Entre as tantas histórias e obras de Oscar Niemeyer, há uma que ninguém está com coragem de contar, talvez por causa do palavrão, mas que, no caso, cabe.

Quando houve o golpe de 1964, ele já era um arquiteto mundialmente reconhecido e estava em Israel onde projetou belíssima sinagoga.

Ao voltar, meses depois da quartelada de 1o. de abril, ele foi duramente interrogado por um general que quis saber como ele podia ser tão rico, sugerindo que recebesse o famoso ouro de Moscou.

E o grande brasileiro respondeu:

'Eu dou o rabo, general'.

Acabou ali o interrogatório.

(Não foi bem o rabo que ele disse, mas passa…A história é que não pode deixar de ser registrada)."

Via

ninjas também podem usar sapatos cor-de-rosa


Ontem minha mãe postou no Facebook uma foto do meu irmão Sam, de 5 anos, usando um par de sapatos que ele escolheu para o seu primeiro dia na pré-escola. Ela explicou a ele na loja que os sapatos eram feitos para garotas. Sam então disse a ela que não se preocupava e que "ninjas também podem usar sapatos cor-de-rosa".

Sam foi para a escola e recebeu diversos elogios por causa dos seus sapatos novos. Nenhuma criança disse nada negativo em relação a eles. Contudo, minha mãe recebeu cerca de 20 comentários na foto, de vários familiares dizendo o quanto "errado" aquilo era, como "coisas como essa vão afetá-lo socialmente" e, dito mais eloquentemente pela minha tia-avó, "esta merda vai torná-lo gay".

Minha mãe então deletou a foto e disse ao Sam que ele pode usar o que ele quiser para ir à escola, e que é decisão dele. Se ele quiser usar sapatos cor-de rosa, ele pode usar sapatos cor-de-rosa. Sam então explicou que ele gostava dos sapatos não porque eram rosa, mas porque eles eram "feitos de zebra", e zebra é o seu animal favorito. :)

O que dizer sobre a sociedade, quando um grupo de adultos poderia receber uma lição de humanidade de uma classe de pré-escola?

(Via Facebook. Tradução de Murilo Araújo.)

bullying: intolerância às diferenças


Recentemente ouvi de uma mãe que a escola onde seu filho, 10 anos, estuda chamou-a porque o menino vinha praticando bullying contra um colega. Na sua fala existia um gozo pela valentia, coragem e liderança do filho. Os detalhes da natureza da violência são desnecessários nesta reflexão.

O que me chama a atenção é que esta mãe, antenadíssima em tudo o que diz respeito à alimentação saudável, consumo consciente, sustentabilidade, educação de qualidade e coletividade, se deleitou ao contar a façanha do filho. “Segura” e decidida, é proprietária de argumentos que convencem o mundo de que está certa (como de fato muitas vezes parece estar) e quem está do lado oposto ao dela, errado.

Divergências existem, são esperadas, saudáveis e construtivas; isto não é motivo de surpresa. O que salta aos olhos, no entanto, é que até esta situação ocorrer, a mãe em questão não havia percebido que no seu radicalismo entre o correto e o incorreto, o necessário e o supérfluo, o útil e o inútil, seu filho estava aprendendo que a vida é feita extremos. Entre, aqui, não significa meio termo, mas a dicotomia presente no discurso e atitudes materna: artificial X natural, comprado X reciclado, público X privado, bom X ruim, entre outros.

A criança aprende pelas referências que tem. Transferir a ela esta cisão da realidade é o mesmo que dizer que o mundo é feito de rígidos opostos: o bonito e o feio, o forte e o fraco, o inteligente e o burro, o saudável e o doente, o magro e o gordo, o rico e o pobre, o esperto e o tolo, o gostosão e o espinhudo. Se não há trânsito entre os extremos, não importa quais sejam eles, as diferenças não se conversam; ao contrário, se atraem e se chocam.

Quando “zoiúdo”, “baleia”, “marica”, “narigudo” ou qualquer outro adjetivo que se transforma em sujeito “bate e volta”, “entra por um ouvido e sai pelo outro”, estamos diante de alguém que desenvolveu um escudo protetor contra ataques, um recurso interno de proteção que o defende das peripécias da vida. Aceitar-se como diferente do outro (não como estigma, mas como ser único) é ter segurança e autoconfiança necessárias para a construção desta barreira. A falta dela (a visão de mundo polarizada) é ao mesmo tempo um imã e um alvo certeiro para quem quer atacar, já que atrai exatamente porque o outro não encontra meios de defesa. Um par perfeito para quem carrega em si a rigidez de enxergar o mundo apenas sob sua própria ótica.

Do ponto de vista psíquico, criatividade e rigidez são antônimos. Enquanto a primeira caracteriza aqueles que reconhecem a pluralidade e conseguem “brincar” com as diversidades, a segunda “acha feio o que não é espelho”, estando presente naqueles que não conseguem olhar para além do próprio umbigo, mesmo que seu discurso e tentativas sejam contrários.

O bullying – de bully, do inglês, mandão, tirânico – caracteriza-se por atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, por um ou mais indivíduos contra também um ou mais indivíduo. Apesar de o termo estar em uso há poucos anos, as situações de violência pela intolerância às diferenças individuais e grupais sempre existiram. Vide as guerras.

Aparentemente, agressor e agredido são antagônicos – o mal e o coitado. Ora, em ambos os lados reside uma postura engessada decorrente da dificuldade no trato com as diferenças, uma sob a forma de ataque e a outra de paralisia. É por isto que tanto quem pratica quanto quem sofre o bullying são vítimas; vítimas de uma cultura que na prática tem sustentado e valorizado a massificação, a falta de singularidade. No entanto, “esquece-se” que mesmo que se tenham os mesmos pais, vistam a mesma roupa, tenham o mesmo carro, estudem na mesma escola, as pessoas são diferentes e as diferenças não podem ser tidas como defeito, inferioridade, nem como vantagem ou maior valia.

Um cego tem uma percepção tátil e auditiva que aqueles que têm o privilégio da visão raramente conseguem ter. Uma criança com Síndrome de Down em geral desenvolve uma afetuosidade que muitos não conseguem desenvolver. São inferiores? O cara cheio da grana, que pode comprar tudo, nem sempre é o mais feliz ou bem sucedido em todas as áreas da vida. O que vence em todas as corridas, pode ser um derrotado, por exemplo, nas relações amorosas. São superiores? Não, são todos diferentes uns dos outros, cada qual com suas características e potencialidades.

Enquanto vivermos avessos à pluralidade das coisas, valores, princípios, emoções, ideias, jeito de ser, prevalecendo os pré-conceitos e o que eu quero e penso, não existirá o outro enquanto sujeito desejante e pensante. Ou seja, não haverá saída para as situações conhecidas atualmente como bullying.

O ”narigudo” carrega uma herança biológica, mas também cultural. O “gordinho” pode assim ser porque mergulha nos prazeres gastronômicos. O menino mais sensível tem uma habilidade que pode ser um grande diferencial em relação aos “machões de carteirinha”. Por que não se aventurar a conhecer este “outro” lado de cada um? O mundo precisa de todos. Por isto, desde muito cedo devemos educar a criança para as diferenças e, consequentemente, para o respeito a si e ao outro. Já é mais do que hora de encorajarmos as crianças (e a nós mesmos) a conviver com as diferenças e a julgar somente a partir da experiência, e não de conceitos imaginados e pré-estabelecidos.

As crianças aprendem a partir do que observam. Quem só anda de carro porque transporte público é para “os outros”, se coloca numa posição de superioridade. Quem não pode brincar com um amigo que é mal educado, perde a chance de descobrir as demais qualidades daquela criança. Quem escuta sempre que é a criança mais linda do mundo, não conseguirá achar outra tão ou mais bonita do que ela.

Em qualquer desses gestos ou palavras, mesmo que despercebidos ou não intencionais, as crianças vão aprendendo que as diferenças não encontram espaço de expressão. Seu único caminho acaba sendo negá-las, pelo ataque ou pelo silêncio. É a sementinha para o bullying acontecer, seja como agressor ou agredido.

- Patrícia Grinfeld, no Ninguém cresce sozinho

Clara Gomes, via

6 de dez. de 2012

o discurso que culpa a vítima

Encontrei a TED Talk aí em cima neste excelente tratado sobre feminismo para leigos, aqui

Aproveitando o ensejo do vídeo acima, a Lola publicou hoje um bom texto sobre o tema ("Façamos o melhor para não criar estupradores" - leia na íntegra aqui):

"Quando meus filhos eram pequenos, eu e meu marido nos esforçamos em sempre focar num comportamento de empatia. Todos nossos filhos são como esponjas. Quando o seu filho é pego brigando com outra criança por ter que dividir um brinquedo e você pergunta 'Como você se sentiria se alguém batesse em você?', você está ensinando seu filho a não pensar somente em si mesmo. Quando você ensina empatia a crianças, você está evitando que elas se tornem adultos narcisistas, uma desordem que boa parte dos especialistas acredita estar presente na grande maioria dos estupradores. É preciso usar a mídia em seu favor. Quando seus filhos forem expostos a conteúdos violentos ou abusivos contra mulheres em filmes, videogames e música, você precisa parar e explicar a eles porque este conteúdo é errado. Também é necessário ensiná-los a respeitar mulheres e tratá-las com igualdade. Assim, se seu filho de 9 anos disser que uma menina da sua classe se veste como uma 'vadia', você deve chamar sua atenção, e explicar a ele que o modo como uma mulher se veste não é indicação nenhuma do valor dela como ser humano nem um indício de sua personalidade. (...)

Dizer aos nossos filhos 'não estupre' não é suficiente. É necessário incluir muitos outros tópicos nessa discussão. Diga a ele: não repasse fotos íntimas que você receber de garotas para seus amigos. Não diga grosserias a meninas que passam por você na escola. Não dê álcool ou drogas para meninas em festas esperando que isso aumente as chances de que elas fiquem mais receptivas sexualmente. Não veja meninas e mulheres como seres sexuais desprovidas de intelecto, sentimentos e alma. Não chame meninas de vacas, vadias ou qualquer palavra similar. Não deixe seus amigos fazerem isso."

Leia também: "A cultura do estupro", aqui

* * *


Toronto, Canadá, 28 de setembro: ação anual dos homens 

"Ande uma milha em seus sapatos", de combate à violência
contra a mulher e a discriminação sexual. (Via)Gostou? Veja também este site. 

E sobre o tal discurso que culpa a vítima:

(...) ainda na graduação de Psicologia, tive a oportunidade de estagiar numa Vara de Infância e Juventude. O trabalho era puxado, mas sempre sobrava tempo praquele momento do café, onde todos os estagiários, e mesmo os orientadores, se reuniam pra conversar sobre suas impressões dos casos e outros tantos assuntos... Uma característica nessas conversas, no entanto, começou a me incomodar. Diante dos casos de violência sexual, não era raro que fossem ditas coisas como “Ah, mas com aquela roupa, pediu pra ser estuprada!”; “Mas também, olha aonde ela tava!?”; “Ah, ela deu em cima dele. Já tem idade pra saber o que está fazendo!”; “Mas ela não tem nenhuma marca?”.

Eu chegava a argumentar e apontar que este não era o caminho pra se pensar a questão, mas confesso que poucas vezes obtinha sucesso. Resolvi transformar meu incômodo no meu trabalho de conclusão de curso e desde 2009 venho tentado, então, compreender esse discurso que ao invés de acolher, acusa a mulher vítima de violência sexual. Hoje, no mestrado, tenho trabalhado mais especificamente com a reprodução desse discurso no âmbito jurídico.

Esses comentários, que eu ouvia nas conversas na hora do café, não são exclusividade daquele local (poderia justificar que estou falando de uma cidade do interior do Espírito Santo), ou ainda, característico da "mentalidade" daquelas pessoas. Na verdade, essas explicações refletem um julgamento (compartilhado socialmente) sobre as vítimas de violência sexual a partir do local que frequentam, da roupa que usam, das suas companhias. Esses depoimentos exemplificam como se perpetua a cultura sexista, que valida a violência contra mulheres. É como se o fato de a vítima estar viva, e de certa forma sem muitos sinais de violência, significasse que ela não tivesse resistido o suficiente ou, ainda, que de alguma forma ela tivesse colaborado pro que houve (através de um comportamento sedutor, por exemplo).

Algumas teorias tentam dar conta do assunto através de perspectivas diferentes (honra, representação social, valores, tradicionalismo, gênero, entre outras). Uma, dentre essas, me chamou atenção. Proposta por Martha Burt em 1980, a teoria de Mitos de Estupro afirma que esses mitos referem-se a um conjunto de crenças, que servem para sustentar e perpetuar a violência sexual contra as mulheres, e estão relacionados a questões como os estereótipos de gênero e desconfiança de um sexo para com o outro.

Esses mitos acabam por embasar um discurso que culpa a vítima e absolve, simultaneamente, o agressor. Acabam, ainda, por minimizar e justificar a agressão cometida contra a mulher através de afirmações sobre os comportamentos que deveriam ter sido apresentados por ela.

O que se percebe é que nas questões relacionadas à sexualidade, os preconceitos e estereótipos sociais direcionados à mulher se tornam ainda mais significativos -– o que se reflete, por exemplo, na forma como a polícia e/ou o Judiciário tratam o tema.

Comparando-se práticas jurídicas de um século atrás com práticas jurídicas atuais, observa-se que mesmo a violência sexual sendo considerada um crime hediondo, para muitos operadores do Direito continua a ideia de que tal tipo de violência é cometido apenas contra “mulheres honradas” (virgens, muito jovens, idosas, mulheres que resistiram fisicamente), enquanto outras raramente farão parte deste grupo -– e não serão percebidas, portanto, como vítimas ‘genuínas’. Ou seja, mulheres incapazes de cumprir as ditas regras sociais que “definem o bom comportamento feminino” não pertenceriam ao grupo das "vítimas reais" (prostitutas, por exemplo, estariam excluídas). Assim, não é incomum que seus depoimentos sejam sumariamente descartados e que essas mulheres sejam vistas como culpadas, não vítimas.

Lembro de, durante esse processo de tentativa de compreensão do fenômeno, ter tido acesso a sentenças onde juízes alegavam que pelo fato de a mulher não ser mais virgem, a violência não teria sido algo tão traumático (como ela queria fazê-los acreditar), ou que (também pelo fato de a mulher ter vida sexual ativa) a relação havia sido consensual e que, portanto, não havia crime a ser julgado. Outros chegaram a fazer com que a vítima pagasse indenização ao agressor -– uma vez que a reputação dele havia sido manchada.

Para além desses problemas, um outro ponto que considero pertinente levantar é que tal discurso não é proferido apenas por homens, mas também por mulheres, inclusive pelas próprias vítimas. Mulheres que, contaminadas por um discurso patriarcalista, internalizaram a culpa e passam -- ou continuam -- a permitir (e, em alguns casos a incentivar) o exercício de relações baseadas em concepções naturalizantes e a-históricas. Concepções estas que viabilizam que a hierarquia de gênero seja justificada e exercida através do domínio do masculino sobre o feminino.

Compreender o fenômeno requer tempo e muita, muita discussão. São diversos os fatores que influenciam na maneira como a vítima (principalmente adulta) de violência sexual seja tratada. O assunto não se esgota aqui. Seria impossível dar conta de tantas questões em tão pouco tempo e espaço. Considero, no entanto, que a principal questão aqui e neste momento, é que precisamos compreender que esses discursos (bem como os sentimentos de culpa de muitas das vítimas) não têm relação apenas com o ato da violência em si.

São, na verdade, fruto de um contexto social que construiu, ao longo do tempo, um estereótipo do que é o feminino, qual o seu lugar e função social. Discurso que acaba por dar sentido ao ato violento, alimentando-o e fazendo-o sobreviver. Discurso que relega à vítima um lugar de marginalidade. Somente através de espaços de discussão e debate é que poderemos romper barreiras e transformar uma cultura sexista como a nossa em uma cultura baseada no respeito e cuidado com o próximo. E pensando especificamente neste tema, somente assim poderemos oferecer acolhimento e tratamento adequado à vítima e a seu agressor.

- Arielle Sagrillo Scarpati (arielle.psicologia@gmail.com), em guest post para a Lola

o caminho como arquétipo

Foto: Josh Adamski

Tenho especial fascínio por caminhos, especialmente caminhos de roça, que sobem penosamente a montanha e desaparecem na curva da mata. Ou caminhos cobertos de folhas de outono, multicores e em tardes mortiças, pelos quais andava nos meus tempos de estudante, nos Alpes do sul da Alemanha. É que os caminhos estão dentro de nós. E há que se perguntar aos caminhos o porquê das distâncias, porquê, por vezes, são tortuosos, cansativos e difíceis de percorrer. Eles guardam os segredos dos pés dos caminhantes, o peso de sua tristeza, a leveza de sua alegria ao encontrar apessoa amada.

O caminho constitui um dos arquétipos mais ancestrais da psiqué humana. O ser humano guarda a memória de todo o caminho perseguido pelos 13,7 bilhões de anos do processo de evolução. Especialmente guarda a memória de quando nossos antepassados emergiram: o ramo dos vertebrados, a classe dos mamíferos, a ordem dos primatas, a família dos hominidas, o gênero homo, a espécie sapiens/demens atual.

Por causa desta incomensurável memória, o caminho humano apresenta-se tão complexo e, por vezes, indecifrável. No caminho de cada pessoa trabalham sempre milhões e milhões de experiências de caminhos passados e andados por infindáveis gerações. A tarefa de cada um éprolongar este caminho e fazer o seu caminho de tal forma que melhore e aprofunde o caminho recebido, endireite o torto e legue aos futuros caminhantes, um caminho enriquecido com sua pisada.

Sempre o caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e, simultaneamente, ele é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Mergulhamos na escuridão e na confusão. Como hoje, a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússula e estrelas a orientar as noites ameaçadoras.

Cada ser humano é homo viator, é um caminhante pelas estradas da vida. Como diz o poeta cantante indígena argentino Atahulpa Yupanki, "o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência pronta. Devemos construí-la. E para isso importa rasgar caminho, a partir epara além dos caminhos andados que nos antecederam. Mesmo assim, o nosso caminho pessoal e particular nunca é dado uma vez por todas. Tem que ser construído com criatividade e destemor. Como diz o poeta espanhol António Machado: "caminhante, não há caminho, se faz caminho caminhando”.

Efetivamente, estamos sempre a caminho de nós mesmos. Fundamentalmente, ou nos realizamos ou nos perdemos. Por isso, há basicamente dois caminhos como diz o primeiro salmo da Bíblia: o caminho do justo e o caminho do ímpio, o caminho da luz ou o caminho das trevas, o caminho do egoísmo ou o caminho da solidariedade, o caminho do amor ou o caminho da indiferença, o caminho da paz ou o caminho do conflito. Numa palavra: ou o caminho que leva a um fim bom ou o caminho que leva a um abismo.

Mas prestemos a atenção: a condição humana concreta é sempre a coexistência dosdois caminhos e o entrecruzamento entre eles. No bom caminho se esconde também o mau. No mau, o bom. Ambos atravessam nosso coração. Esse é o nosso drama que pode se transformar em crise e até em tragédia.

(...) Não há escapatória: temos que escolher que caminho construir e como seguir por ele, sabendo que "viver é perigoso”(G. Rosa). Mas nunca andamos sós. Multidões caminham conosco, solidárias no mesmo destino acompanhadas por Alguém chamado: "Emanuel, Deus conosco".

- Leonardo Boff, via

Teólogo, filósofo e escritor

5 de dez. de 2012

votação sobre maioridade penal é adiada e organizações reforçam que a aprovação é um retrocesso




"A criminalidade e a violência, da qual estão inseridos/as adolescentes e jovens, são frutos de um modelo neoliberal de produção e consumo que opera na manutenção das injustiças socioeconômicas, e devem urgentemente ser transformadas, especialmente a partir da construção de políticas que garantam direitos básicos à juventude e adolescentes, como o direito à educação e saúde de qualidade, moradia digna e trabalhos decente. Além disso, o Estado brasileiro não tem efetivado a aplicação mais ajustada das medidas socioeducativas que estão previstas no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e poucas são as iniciativas de execução de políticas públicas para a juventude, que são essenciais para uma vida digna e segura.

Trancar jovens com 16 anos em um sistema penitenciário falido que não tem cumprido com a sua função social e tem demonstrado ser uma escola do crime, não assegura a reinserção e reeducação dessas pessoas, muito menos a diminuição da violência. A proposta de redução da maioridade penal é considerada inconstitucional e violação de cláusula pétrea, além de fortalecer a política criminal e afrontar a proteção integral."

- Nota de repúdio da Pastoral da Juventude à redução da maioridade penal, aqui

* * *

A redução da idade penal para 16 anos no Brasil não é a solução para o fim da violência e vai contra os princípios de proteção aos direitos da criança e do adolescente. É o que defendem diversas organizações de direitos humanos sobre a votação da Proposta de Emenda Constitucional Nº 33, a PEC 33, que seria votada hoje no Senado, mas foi adiada.

O assunto tem gerado polêmica. O argumento básico é que e crianças adolescentes têm cometido crimes graves e deveriam ser tratados penalmente como adultos por isso. Mas nesse caso, para que serviria, então, o Estatuto da Criança e do Adolescente? É aí que entram os defensores de direitos humanos que atuam na área. Em recente passagem por Fortaleza (Ceará), num evento promovido pelo Ministério Público, a representante da Agência de Notícias pelos Direitos da Infância (Andi), Suzana Varjão, e demais representantes da área jurídica que estavam presentes foram claros: os adolescentes em conflito com a lei ainda estão em formação, além disso todas as questões de vulnerabilidade social devem ser levadas em conta.

Ainda ontem, a Fundação Abrinq enviou uma carta aberta aos senadores e senadoras da Comissão Constituição, Justiça e Cidadania sobre o tema. "A justificativa de que se valem os legisladores afetos à redução da maioridade penal segue no sentido de que o adolescente da atualidade é diferente do adolescente de outrora. Evidente que tal assertiva não considera a situação crítica em que se encontram, atualmente, os sistemas penal e carcerário, afirmou a carta.

Em material da Andi, o coordenador do Programa de Cidadania dos Adolescentes, no Unicef Brasil, Mário Volpi, descreve a iniciativa dos parlamentares como equivocada. Para ele, "os projetos focam o agravamento de pena e a redução da idade como se enviar um adolescente de 14 ou 16 anos para o sistema penal de adultos fosse resolver o problema da violência”.

A solução para os adolescentes em conflito com a lei está nos projetos socioeducativos como os propostos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, o Sinase.

"Estamos de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, no que se refere à natureza do trabalho socioeducativo, isto é, uma natureza transversal, intersetorial, complexa e especializada, que envolve diversos poderes, efetivando-se nas três esferas de governo”, escreve a Abrinq.

Fonte: Adital

luto negado


Júlio Miguel Molina, coronel da reserva do exército, foi assassinado em Porto Alegre. Num lance surpreendente, a investigação desse crime abriu as portas para a elucidação de outro: o assassinato do deputado cassado Rubens Paiva, torturado até a morte e desaparecido durante a ditadura. Na casa do militar foram encontrados documentos, restos de arquivos do DOI-Codi. Nunca mais se teve notícia de Paiva depois do dia 20 de janeiro de 1971, embora sua tortura houvesse sido testemunhada por outras vítimas. Os cinco filhos e a esposa estavam em casa quando ele foi levado por militares da aeronáutica. Posteriormente, foram informados de que o preso havia fugido. Essa família conviveu por décadas com um desaparecimento, que é diferente de uma morte. Sem poder se despedir, tiveram que dizer adeus por dedução.

Os papéis encontrados devolvem simbolicamente partes do corpo de Paiva. Atestam sua prisão e arrolam os objetos recolhidos na ocasião: vestimentas, um lenço branco, um chaveiro com cinco chaves, papéis e documentos. Até agora não havia como provar a presença do deputado nas dependências do exército. Agora há. Além de anistiado, o crime estaria prescrito. Porém, ocultação de cadáver é um crime que não prescreve. Nem o luto.

O luto é um processo lento, no qual vamos acreditando, a contra-gosto, que perdemos alguém para sempre. Inutilmente aguardamos sua volta, tecemos comentários que lhe interessariam, esperamos sua opinião, e a cada reiterado silêncio, nos convencemos um pouco. Mortes aniversariam por muito tempo, revemos repetidas vezes suas cenas. Por ser inexorável, a morte é sempre traumática. O trabalho do luto é a tentativa de lhe emprestar algum sentido.

Um corpo desaparecido, insepulto, é o seqüestro do direito ao luto. Sem ritos funerários, a morte fica parecendo uma ilusão, de tal modo que a própria vida do morto vai tornando-se imaginária. A crueldade com Paiva estendeu-se, portanto, à família. Seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, perguntou-se sobre Molina: “Por que guardava o documento? Era uma espécie de souvenir da guerra suja?” A resposta talvez seja que os algozes (com quem o coronel teve algum vínculo) também precisam materializar a morte para acreditar nela, mesmo que seja dos seus inimigos. A tragédia grega de Antígona, impedida de realizar os ritos funerários de seu irmão, se atualiza para os parentes de presos políticos desaparecidos. No fim desta tragédia brasileira, espero que estejam escritas cenas de restituição da dignidade do luto.

- Diana Corso, para o jornal Zero Hora, via.

vai chover muito. e vai morrer gente. mas quem se importa?

Foto: Glenn Harper

Reportagem de Fernanda Odilla, na Folha de S.Paulo desta segunda (3), mostra que – até o fim de novembro – o governo federal se comprometeu a pagar menos da metade (48%) do planejado a programas voltados à prevenção e resposta a desastres (principalmente as causadas pelas chuvas). E, efetivamente, desembolsou 25%. Brasília reclama que os estados e municípios têm que cumprir certas exigências para receberem o dinheiro e não estariam fazendo isso.

E o prognóstico é de chuvas fortes, especialmente nas regiões Sudeste e Sul.

Um depoimento colhido na reportagem, de Fabrício Silva, do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), vale destaque: “Não vai haver chuva abaixo da média no próximo trimestre”.

É um excelente aviso às autoridades de plantão. Não adianta botar a culpa no Esqueleto, na Maga Patalógica ou em Lex Luthor. Quando (e não “se”) morrerem pessoas nesta temporada de chuvas, a responsabilidade também será de vocês por inação no tempo seco. Se as eleições fossem na época das chuvas, haveria muito pouco político reeleito.

Prestem atenção nessas duas frases que aparecem com frequência na mídia:



- Autoridades justificaram-se afirmando que, nas duas primeiras semanas de janeiro, já choveu mais do que a média do mês nos últimos anos.

- Aqui, no Carnaval de Olinda, a festa não tem hora para acabar.

O que há de comum entre elas? Bem, não muito além do fato de que são figurinhas que se repetem com impressionante regularidade. Para o repórter que transmite a folia pernambucana, a frase, quase um mantra da alegria, é indolor. Já a outra carrega, em seu bojo, duas tristezas: a consequência do aguaceiro em si e a responsabilização da natureza por algo que a ação humana poderia certamente minimizar. Se choveu mais do que deveria, fica a impressão de que não daria para fazer nada, não é?

Quanto a isso, o metereologista ouvido pela reportagem foi categórico: “Colocam a culpa na meteorologia, mas nós avisamos com antecedência. Se os governantes não tomarem providências, todo ano vai ser a mesma coisa: enchentes, carros boiando, deslizamentos”.

E não estou falando de sistemas de alertas (até porque o governo federal já avisou que vai levar anos para fazer algo que já deveria ter feito há outros anos) e sim de políticas de habitação decente, saneamento, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo… Falhas neste caso custam vidas e um “foi mal, aí, não tinha como antecipar” não resolve.

Pois da mesma forma que, religiosamente, o bloco do Bacalhau do Batata vai percorrer Olinda na Quarta-Feira de Cinzas tocando frevo, o começo do ano será de atenção e preocupação.

Imaginei isso aqui, tempos atrás, neste blog: seria épico se, um dia, uma grande chuva chegasse escura no meio da tarde. Veriam, em pouco tempo, tratar-se de um pé d’água bíblico, maior que as tempestades habituais. E começasse a cair apenas sobre o Palácio das Laranjeiras, o Palácio dos Bandeirantes e as prefeituras de ambas as cidades. Poderia incluir aí também uma chuva localizada sobre a casa dos governantes. A água subiria com o lixo entupindo as bocas de lobo e inundaria tudo, encharcaria tapetes, afogaria alguns carros e arrastaria colchões.

Talvez, com isso, fossem implantadas ações habitacionais e de saneamento para amenizar o sofrimento desse povaréu, que foi empurrado para as várzeas, vales de rios e encostas de morros pela especulação imobiliária e a pobreza. Dividindo a mesma situação, talvez enxergassem no outro não apenas um personagem da matéria da TV ou um voto. Afinal, com aqueles que foram assassinados pelo descaso, morre junto um pouco de todos nós e de nossa dignidade. Não pergunte por quem os sinos dobram. Os sinos dobram por ti.

Nas chuvas que assolaram o Rio em 2010, o prefeito do Rio Eduardo Paes criticou os “demagogos” que reclamavam da retirada de populações de áreas de risco na época da seca. Tá, mas a prefeitura queria retirá-los de lá sem uma opção de moradia? O fato é que expulsar é mais fácil, ainda se for para mais longe onde esse povinho não pode reclamar (quiçá, se Deus quiser, fora do município…) e tome vale-coxinha para pagar o aluguel! Na mesma época, ouvi um apresentador de TV dizer algo do tipo “não interessa para onde o pessoal retirado vai, isso não é problema do Estado”. Ah, é? É de quem então? Depois disso, Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro, afirmou: “Educar também é dizer não. Não se pode habitar essas áreas.” Que tal uma paráfrase? “Governar também é dizer sim. Sim, vamos priorizar a construção de moradias dignas para as famílias que nada têm não precisem habitar essas áreas.” O que esses políticos têm na cabeça que falam mais abobrinhas nessa época do ano? É a umidade, é? Alguém acha que o povo gosta de morar em encosta de morro, que é legal ter que viver no único lugar em que ninguém mais quer por falta de opção?

Não precisamos de governantes otimistas, que acreditam na possibilidade de chover menos, ou de administradores religiosos, que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para o Sobrenatural. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a metereologia.

O assunto é o oposto, mas a ideia a mesma: durante uma reportagem no interior de Alagoas, em 1999, um homem me contou a história de uma menina que jazia num porta-retratos na sala de sua casa. Os anos se passavam e sua filha cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. Ele, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, disenteria, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado. Quando voltou, a filha já estava morta.

Lendo essas mazelas do mundo, que romperam uma vez como tragédia e vão se repetindo como farsa, ano após ano, a gente sabe que certas coisas vão acontecer.

Mas quem se importa?

- Leonardo Sakamoto, em seu blog

4 de dez. de 2012

advento: memorial da esperança cristã

Foto: David Taggart (também aqui)

Não é preciso ser cristão, ou religioso, para apreciar a reflexão do autor sobre o sentido sagrado original do tempo do Advento: a regeneração da esperança - há muito soterrado debaixo da correria das compras e preparativos natalinos.

As ciências da religião mostraram que, desde o surgimento da religiosidade, o ser humano religioso sacraliza o tempo. Ele procura inserir intervalos de tempo sagrado no "tempo profano”. Mircea Eliade afirma que o tempo sagrado serve para reatualizar eventos que tiveram lugar nos primórdios, no passado mítico. No tempo sagrado acontecem as festas religiosas e as liturgias. Elas servem para reintegrar o tempo ordinário ou normal no tempo mítico. Através do tempo sagrado os seres humanos religiosos acreditam recuperar o eterno presente e fazer experiência da presença da divindade. Assim sendo, na concepção da pessoa religiosa o tempo sagrado permite que o mundo renove-se anualmente e reencontre a sua santidade original. Nessa concepção não há apenas a cessação de um tempo, como pensam as pessoas modernas, mas a abolição do passado e a cessão do tempo decorrido. O tempo que existiu até então desaparece por completo e surge um novo tempo. E ao participar das festas sagradas que marcam o tempo sagrado as pessoas também são recriadas e passam para uma nova existência. Neste sentido a festa sagrada não é a comemoração de um acontecimento do passado, mas a sua reatualização.

Por meio dos tempos e das festas sagradas os seres humanos religiosos acreditam que se tornam contemporâneos dos deuses. Creem que por meio delas podem reencontrar a plenitude da vida e experimentar a sensação de existir como criaturas dos deuses. Podemos então afirmar que na sacralização do tempo se encontra uma das grandes aspirações de todo ser humano: voltar àquele estado original do mundo nascente que assegura uma vida realmente feliz. Trata-se do desejo de uma vida autêntica, simples, mas carregada de significado e de sentido. Por isso ele está disposto a colaborar com as divindades, fazendo de tudo para reestabelecer este estado originário de existência. Podemos então afirmar que neste elemento da religiosidade nós encontramos não só a sede do sagrado, mas também a sede do ser, entendendo isso como desejo profundo de autenticidade e de felicidade.

Isso vale também para o cristianismo e para cada um dos seus tempos litúrgicos e para cada uma de suas festas e celebrações. Por meio dos tempos sagrados e de suas celebrações litúrgicas o cristianismo entende trazer para o momento presente o tempo de Cristo. O cristão e a cristã se conectam a Cristo participando das festas dos tempos sagrados, tornando-se ramos verdes e frondosos da grande videira que é Jesus (Jo 15,1-6). Os tempos sagrados do cristianismo querem ajudar os cristãos e as cristas a perceberem que Jesus Cristo não é um personagem do passado, do qual guardamos algumas lembranças bonitas. Querem revelar que "Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e será sempre o mesmo” (Hb 13,8).

O objetivo de tudo isso é robustecer a fé, a esperança e a caridade, de modo que os cristãos e as cristãs não precisem de doutrinas estranhas e de certas regras exóticas para viver (Hb 13,9). O objetivo dos tempos e das festas sagradas é alimentar a autonomia e a liberdade de espírito, dadas por Cristo, de maneira tal que as pessoas não precisem viver submetidas a normas esquisitas que escravizam (Gl 5,1-6). Ao participar dos tempos, das festas e das liturgias sagradas, os cristãos e as cristãs experimentam em profundidade o amor e a ternura da Trindade que afastam o medo e o temor (1Jo 4,18).

No cristianismo cada tempo e cada festa litúrgica entende realçar alguns elementos significativos de toda essa dinâmica. Assim, por exemplo, o tempo do Advento, período de quatro semanas que antecede o Natal, procura nos ajudar a refletir sobre a esperança. Esta, a esperança, é uma das características fundamentais do cristianismo. Sem ela a existência humana não teria sentido; seria mero desespero. Isso porque, diz o apóstolo Paulo, "a esperança não engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

A esperança, por sua vez, brota da certeza de que o Reinado de Deus já está acontecendo no meio da humanidade. Apesar das nossas fragilidades, da violência e da injustiça, Deus Trindade vai conduzindo a história humana na direção do Pleroma, ou seja, daquela Plenitude que ele mesmo sonhou para todo o cosmos, para todo o universo, e que se encontra no seu Filho Jesus (Cl 1,19-20). É a esperança que alimenta a nossa existência e nos faz, como Abraão, "esperar contra toda esperança” (Rm 4,18). Ou seja, é a esperança que nos impulsiona a seguir, mesmo quando tudo ao nosso redor parece desmoronar e não ter mais sentido. Porém, para que isso aconteça é indispensável não ver a esperança como uma "virtude cristã”, mas como dimensão essencial da existência cristã. Se nós vemos a esperança como "virtude” a conquistar, corremos o risco de nos livrarmos dela exatamente quando mais precisamos. Para que a esperança seja a propulsora do nosso existir é indispensável vê-la e senti-la como graça que já nos foi dada por Cristo. Não é preciso mais conquistá-la. Ela já está dentro de nós. Basta perseverarmos nela: "Na esperança, nós já fomos salvos” e "é na perseverança que aguardamos o fruto que dela virá” (Rm 8,24-25).

O Advento deveria ser o tempo da Igreja que realiza o memorial da esperança cristã. Preparando-nos para celebrar o natal de Jesus, "nossa esperança” (1Tm 1,1), este período litúrgico deveria, por meio de suas celebrações e reflexões, levar os cristãos e as cristãs a serem mais esperançosos. Infelizmente boa parte do povo cristão ainda vive na desesperança. Sinal evidente disto é a corrida desesperada por milagres e curas. É a infinita carga de promessas e o consumo interminável de "kits de salvação” (medalhas, santinhos, frascos de água benta e de óleos etc.) vendidos nos santuários, igrejas e livrarias religiosas.

Esta falta de esperança leva ao descompromisso e à indiferença. Leva ao individualismo religioso: cada um e cada uma querendo se salvar sozinho e para se salvar sozinho quer sempre levar vantagem sobre os outros. O máximo que fazemos são alguns atos assistencialistas, como, por exemplo, distribuição de comidas, roupas e cobertores em determinadas ocasiões. Mas, nos recusamos a exercer a cidadania e a participar ativamente da vida social, como nos pediu o Concílio Vaticano II. E sem este tipo de participação e de engajamento não há como mudar os destinos do mundo.

É verdade que o Reinado de Deus já está acontecendo, mas o Pai quer que, pela esperança ativa, apressemos a sua chegada e a sua plena realização (2Pd 3,12). E a humanidade tem o direito de receber dos cristãos e das cristãs um testemunho concreto de esperança (1Pd 3,15). E este testemunho concreto não acontece por meio de palavrórios, de rezarias e de esmolinhas, mas da participação ativa em projetos de justiça e de solidariedade. De fato, como nos ensina Tiago, a fé sem ações concretas é um cadáver (Tg 2,26).

Somos, pois, convidados a viver o tempo do Advento como tempo de esperança. Para tanto seria bom fazer algumas mudanças na liturgia católica do Advento, começando por abolir o clima penitencial que o caracteriza e que se expressa pela ausência do Glória e pela cor roxa dos paramentos. A esperança é verde e não roxa! Esperança não rima com tristeza, mesmo quando não vemos com clareza; quando as coisas parecem caminhar para o precipício. Esperança rima com alegria (1Ts 2,19-20). Precisamos, pois, devolver a alegria ao tempo do Advento: "Fiquem sempre alegres no Senhor! Repito: fiquem alegres! Que a alegria de vocês seja notada por todos. O Senhor está próximo. Não se inquietem com nada” (Fl 4,4-6).

- José Lisboa Moreira de Oliveira, via

Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília

3 de dez. de 2012

quem sabe faz a hora

Foto: daslasher1

É oportuno relembrar, uma década depois de ocorrida, a memorável entrevista concedida em 2002 à CNN por Martina Navratilova, até hoje considerada a maior tenista de todos os tempos. À época, a atleta já havia vencido o torneio de Wimbledon nove vezes - feito jamais replicado por outro tenista -, ganhara 59 títulos do circuito Grand Slam, se aposentara e entrara para o panteão do esporte.

Martina estava com 46 anos, o ocupante da Casa Branca se chamava George W. Bush e a América se enfronhava a passos largos no conservadorismo social e político que se seguiu ao atentado às Torres Gêmeas, ocorrido no ano anterior.

Ardia nos ouvidos americanos um comentário feito pela tenista sobre suas duas pátrias - nascida na Tchecoslováquia sob domínio soviético, ela se exilara nos Estados Unidos aos 18 anos, durante o U. S. Open de 1975, e era cidadã americana. "Um dos aspectos mais absurdos da minha fuga de um sistema injusto", declarara Martina a um jornal alemão, "é que troquei um que oprime a liberdade de expressão por outro". Disse mais: "Os republicanos, nos Estados Unidos, manipulam a opinião pública e varrem para debaixo do tapete questões controversas. É deprimente."

Martina foi então convidada a esclarecer seu comentário num dos principais programas de entrevistas da CNN, comandado pela apresentadora Connie Chung. O diálogo que se seguiu, resumidamente, é um espanto:

- Obviamente eu não quis dizer que aqui temos um regime comunista - explicou a tenista. - Mas acho, sim, que desde o atentado do 11 de Setembro estamos vendo aqui uma grande centralização de poder. O cidadão americano está perdendo parte de seus direitos.

A jornalista, por seu lado, admitiu ter considerado as declarações não patrióticas. "Tive vontade de dizer ´volte para a Tchecoslováquia´ se você não está satisfeita neste país que te deu tanto, inclusive a liberdade."

- Pois eu considero que estou devolvendo o que recebi ao emitir minha opinião, ao me manifestar - rebateu Martina.

- Entendo que você pense assim, mas poderia manter privadas suas ideias. Por que despejar tudo isso em público sabendo que, por você ser uma celebridade, a repercussão será grande? - prosseguiu a jornalista.

- Como mulher, como lésbica e como atleta mulher saltei vários obstáculos. Acho que tenho o dever de opinar em público.

- Mas você não é política. Não ocupa nenhum cargo público nem de poder.

- Por que você quer me mandar de volta para a Tchecoslováquia? Eu moro aqui. Amo este país. Vivo aqui há 27 anos e pago impostos aqui há 27 anos. Tenho o direito de me manifestar. Por que isso seria não patriótico? - quis saber Marina.

- Existe uma expressão antiga [neste país]: ame-o ou deixe-o", respondeu Connie Chung, sem rodeios.

Algumas coisas mudaram, de lá para cá, a começar pela CNN. Outras não. Igualar dissenso com falta de patriotismo, decretar qual imigrante deve poder ou não permanecer no país continuam a pontuar os discursos da ala mais conservadora da América. Apenas em tom mais camuflado.

Uma reviravolta social profunda na vida americana - a lenta e gradual aceitação do casamento gay -, que também envolve Martina Navratilova, avançou muito.

Foi na mesma entrevista de 2002 que ela confirmou considerar a possibilidade de adotar uma criança. Lésbica assumida desde os 25 anos de idade, Martina defendia publicamente os direitos civis dos homossexuais desde os pré-históricos anos 1980. Mas dado o seu currículo de relações amorosas tempestuosas o desejo ficou incubado por uma década. Foi só poucos meses atrás que a atleta, hoje com 56 anos e morando em Paris, comunicou ter formado oficialmente uma família. Assumir as duas filhas da escultural companheira Julia Lemigrova, com quem vive há seis anos.

Falta-lhe um fecho, contudo. É da grande dama do teatro e do cinema americano, Katherine Hepburn, o que considera o conselho mais útil já recebido: "O que importa não é o que você faz na vida, é o que você consegue completar." Para Martina falta conquistar a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo, com todos os direitos civis a ele atrelados. "É apenas uma questão de tempo", garante ela.

A história parece lhe dar razão. Na tarde de sexta-feira passada os seis homens e três mulheres que compõem a Suprema Corte dos Estados Unidos reuniram-se em sessão fechada para decidir se aceitam pronunciar-se sobre o casamento gay. São necessários quatro votos para que seja aceito cada um dos 10 casos aguardando avaliação. Todos eles contestam a constitucionalidade da restrição do casamento à "união legal entre um homem e uma mulher".

No decorrer dos últimos dez anos, nove dos 41 estados americanos se pronunciaram a favor do casamento gay - seja através de votação popular, seja através de tribunais ou medidas legislativas. Pesquisas nacionais apontam para uma maioria de 54% da população a favor da união de pessoas do mesmo sexo.

Ainda assim, a história também mostra que os juízes têm evitado adiantar-se demais à opinião pública e aos costumes em vigor. Vale lembrar que a extinção das leis que proibiam casamentos inter-raciais só foi aprovada pela Suprema Corte em 1967, quando vigoravam em apenas 16 dos 50 estados americanos.

O resultado da deliberação dos juízes deveria ter sido anunciado ainda na sexta-feira. Foi adiado para amanhã, segunda-feira. É coisa grande, qualquer que seja. "É uma decisão com dimensão para alterar a face da América", acredita o professor de Direito Constitucional da Universidade da Califórnia, Adam Winkler.

- Dorrit Harazim

(Publicado no jornal O Globo, 02/12/12)

2 de dez. de 2012

caminhos do coração


“Quando fores te engajar em um caminho, pergunta a ti mesmo se esse caminho possui um coração”, disse Dom Juan, o iniciador de Carlos Castañeda.


Não se trata do coração físico, sequer do coração afetivo e emocional, mas do coração como centro de integração de todas as faculdades da pessoa; o coração como “centro” do homem – praticamente todas as grandes tradições da humanidade dão testemunho disso.

Um dos dramas do homem contemporâneo é ter perdido o seu coração. Não existe nada entre o cérebro e o sexo; às vezes apenas uma imensa saudade... mas frequentemente passamos das mais frias análises aos excessos pulsantes mais levianos. Dessa maneira, o homem torna-se cada vez mais esquizofrênico, tendo perdido o seu centro de integração, de “personalização” do seu ser: o coração.

Uma inteligência sem coração não é realmente humana. Quando os bancos de memória de um computador são decuplicados, ele torna-se mais “inteligente” do que o homem. A inteligência sem o coração, “a ciência sem consciência”, ilumina nossas sociedades com uma luz fria onde o homem “se gela”, se analisa e se entedia...

Uma sexualidade sem coração não é uma sexualidade realmente humana, qualquer que seja a quantidade das nossas intensidades pulsantes, é apenas em uma relação de pessoa a pessoa que o prazer efêmero pode se transformar em felicidade permanente. “No verdadeiro amor”, dizia Nietzsche, “é a alma que envolve o corpo.”

É o coração que dá um sentido aos nossos enlaces, assim como é o coração que pode orientar as descobertas da inteligência (cf. a física nuclear) em um sentido positivo à vida da humanidade.

Vivemos na época das luzes néon e dos cobertores elétricos, das luzes frias e dos calores opacos. Não é possível se aquecer junto a uma luz néon, não nos iluminamos junto a um cobertor elétrico. Perdemos a chama que é ao mesmo tempo luz e calor. “Redire ad cor” – “volta ao teu coração”: as palavras do profeta são mais atuais do que nunca.

- Jean Yves Leloup
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