31 de jan. de 2013

a cultura do estupro


(...) a maior diferença entre os estupradores que estão na cadeia e os que estão soltos é que os primeiros não conseguiram ou não quiseram utilizar apenas táticas que representassem baixo risco. Os estupradores não detectados em sua grande maioria usam pouca ou nenhuma força, em geral usam bebidas alcóolicas e estupram mulheres que eles conhecem. Eles criam situações nas quais nossa cultura vai protegê-los, arrumando desculpas para o comportamento deles e questionando ou negando o relato de suas vítimas. Eu acredito que os estupradores que estão presos são aqueles que usam as táticas que a sociedade está mais disposta a reconhecer como estupro e menos disposta a justificar.

É o modus operandi que mantém tais estupradores não detectados: eles identificaram corretamente uma metodologia que os coloca sob a proteção da cultura de estupro. É improvável que eles sejam condenados porque a história não se encaixa no script [do que convencionamos como estupro "de verdade"]. É improvável que eles sejam presos porque a história não leva a uma condenação fácil. Aliás, é improvável que eles sejam denunciados porque as sobreviventes do estupro sabem que as táticas que estes homens usam as deixam com poucas chances de fazer justiça. Na verdade, tais estupradores podem colocar a vítima em uma situação na qual ela está tão embriagada ou apavorada ou simplesmente isolada e se sentindo derrotada que ela nunca sequer diz “não” e, porque nossa cultura se recusa a reconhecer tais táticas pelo que elas são, até as próprias vítimas podem só chamar de estupro o que aconteceu muito tempo depois do fato, ou talvez nunca.

Não é difícil entender como isso funciona. Uma mulher pode se culpar pelo acontecido, acreditando que “provocou” o estupro por suas roupas, seu comportamento, por ter bebido demais. Ela pode refutar os avanços sexuais de alguém de várias formas, inclusive fisicamente, porém sem jamais dizer a palavra “não” ou usar de força (como, por exemplo, empurrar o agressor), e sentir que a culpa foi sua por não ter deixado “claro o suficiente” que não desejava sexo. Ela pode enxergar o ocorrido como estupro, porém jamais denunciar, seja por vergonha de ter “contribuído” para ele, seja por saber que tem pouca ou nenhuma prova da violência, que a chance de condenação é baixa, que sua vida pessoal e seu comportamento antes, durante e após o crime serão julgados, que ela pode ser vítima de represálias tanto por parte do estuprador como dos amigos em comum que tem com ele, que vão culpá-la por estar “arruinando a vida” de um pobre rapaz por causa de um simples “mal-entendido” ou por um estupro que ela mesma “provocou”. Ela pode não se lembrar do que aconteceu, e não ter certeza se sofreu ou não uma violência, e não procurar saber o que aconteceu por vergonha das circunstâncias, medo de cometer uma acusação falsa ou simplesmente por saber que, ainda que um estupro tenha ocorrido, ela não dispõe de provas. Ela pode sequer saber que certas violências configuram estupro, imaginando, por exemplo, que “sexo” com uma pessoa desacordada não é estupro (é sim), ou que sexo forçado durante um encontro ou por parte de um namorado não é estupro (é sim), ou que não é estupro caso ela tenha, a princípio, consentido com a relação sexual (a partir do momento em que uma pessoa declara não desejar a relação, ou está incapaz de consentir, é estupro). (...)

Excelente texto do Bule Voador. Vale a pena ler na íntegra, aqui. Leia também: O discurso que culpa a vítima, aqui.

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