7 de set. de 2012

a unanimidade

(Via)

(...) É isso que Nelson Rodrigues é ou se tornou: uma unanimidade. Ele que a vida inteira viveu provocando polêmica, atacando e sendo atacado, virando a mesa das ideias convencionais, fossem elas de direita ou de esquerda, populares ou impopulares, acabou empalhado numa das suas boutades mais ferinas. Hoje qualquer idiota, qualquer desses imbecis que babam na gravata (...) escreve sobre ele apenas para irrestritamente louvá-lo. Flor narcisista hostil à indiferença ou ao coro unânime dos idiotas, Nelson certamente ficaria perplexo ao constatar que a posteridade diluiu ou apagou todos os traços complexos da sua personalidade provocativa.

Onde divisar o reacionário impenitente e autoirônico nessa figura anódina da unanimidade? Suas frases mais ousadas e desconcertantes, não importando no caso o que contivessem de verdade ou erro, dissolveram-se em lugares comuns inofensivos.

(...) A unanimidade que cerca a obra de Nelson Rodrigues, e isso não é de hoje, representa, entre outras coisas negativas, a nossa inconsciência social e ideológica, a leviandade com que vivemos e esquecemos, a inconsistência de nossas supostas convicções que hoje converte em vaca sagrada o inimigo ontem demonizado, que hoje canta loas ao gênio que era ontem um autor pornográfico e um reacionário desprezível.

(...) Fazendo justiça à história documentada, também a Nelson, cuja glória prescinde de distorções do tipo das que acima assinalei, ponhamos os pontos em alguns is. Antes de tudo, o Nelson glorificado pela posteridade é o Nelson jornalista, o autor das crônicas e contos cujo estilo inconfundível e até repetitivo acima grosseiramente esbocei. Aludo ao Nelson politicamente incorreto, ao provocador dotado de raro talento para a frase de efeito. Investindo sua retórica afiada pelo paradoxo desabusado e o descaso diante de qualquer senso de propriedade e medida, Nelson desafiou todas as unanimidades, sobretudo as progressistas, ou assim consideradas no auge da sua militância de jornalista polêmico. Fulminava não apenas as esquerdas em geral, mas também o poder jovem e a liberação dos costumes que pipocaram nos turbulentos anos 1960.

(...) Assim como importa distinguir a obra e a biografia a propósito da passagem do centenário de Nelson Rodrigues, importa igualmente sublinhar o processo inverso, isto é, lembrar de passagem a glória momentânea de alguns autores revolucionários ou de esquerda cuja distinção literária foi fruto exclusivo de fatores biográficos, mais precisamente ideológicos. Aludo a escritores e artistas cuja importância estética esgotou-se tão logo foram superadas as circunstâncias históricas de que dependia o valor de suas obras. Não citarei nomes. O leitor esclarecido pode facilmente indicar vários dentre os que tenho em mente. O fato é que, tão logo se esvaziaram como símbolos de arte politicamente revolucionária, de resistência à ditadura e outros fatores de duração contingente e extrínsecos à qualidade autonomamente estética da obra, todos mergulharam no poço da obscuridade merecida.

Não é evidentemente o caso de Nelson Rodrigues. Por isso embirro com esse clima de unanimidade diluidor da própria força e complexidade da sua obra. O Nelson reacionário, cabotino e tudo mais que de negativo se possa lembrar acerca do homem, este passou, ou algum dia passará. O que fica é a obra, volto a chover no molhado. O que importa reter e justamente louvar é o cronista e o contista excepcionais e acima de tudo o dramaturgo. Sei que não há como rigorosamente dissociar uma coisa da outra, a biografia da obra, já que a personalidade poderosa e marcante do autor projetou-se indelevelmente na obra. O que não engulo é essa unanimidade póstuma onde os inconscientes e idiotas o aprisionam. Por isso concluo repetindo a frase que anula toda essa consagração ofensiva vomitada pelos idiotas sem opinião: “Toda unanimidade é burra”.

(Fernando da Mota Lima, aqui)

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