29 de jan. de 2013

29 de janeiro: dia nacional da visibilidade trans


"Existem mulheres trans e homens trans. São pessoas que não se identificam intimamente com as categorias nas quais foram encaixadas ao nascer. E também existem pessoas que não se sentem dentro de uma dicotomia masculino-feminino.

Não é uma 'moda'. Não é uma coisa 'que está aumentando'. Sempre houve pessoas assim, mas somente há pouco tempo nesta cultura começaram a ser tratadas como gente, em vez de como piadas ambulantes. Já teve a oportunidade de conversar com uma pessoa trans, ou só as conhece de piadas de mau gosto, ou de notícias de prostituição ou assassinato?

São pessoas atacadas de todos os lados: frequentemente pela família, pelo trabalho, pela escola, pelo hospital, pela mídia. Têm seu direito à autoidentificação e à sua individualidade identitária sumariamente negado, e têm que lutar contra um mundo inteiro para serem quem são.

Pouca gente pode alegar nunca ter tido preconceito contra trans, por isso é de extrema importância pensar no assunto, dar voz a essas pessoas, celebrar sua existência como parte da variedade humana."

(Da LiHS, em seu perfil no Facebook)

* * *

"Pessoas trans pode se identificar, inclusive, como homem e mulher, ao mesmo tempo ou alternadamente. 
O corpo não é limite para a humanidade. Você não precisa gostar, mas tem que respeitar".

Fiquei perplexa com a forma tendenciosa como a entrevista com Lea T no Fantástico do último domingo (assista aqui) foi conduzida pela jornalista Renata Beribelli. Com tantos preconceitos e desconhecimento em torno da questão da transexualidade, a opção foi por enfatizar o "arrependimento" (palavra da jornalista, não da entrevistada) de Lea por ter feito a cirurgia de redesignação sexual (e não "troca de sexo", cara jornalista desinformada). Nenhum indício de intenção de esclarecimento, nenhuma sombra de postura crítica, nenhuma menção a aspectos tão importantes e delicados tocados pela transexualidade, como o questionamento dos papeis e das fronteiras entre os gêneros e, sobretudo, o respeito à diferença, à convivência com o Outro, à aceitação do Próximo que, tantas vezes, nos é incompreensível.

Não que eu esperasse da Globo nada melhor que isso, mas, ainda assim, o close na cara escandalizada da Ceribelli (note-se: close na jornalista, não na entrevistada) na hora em que Lea fala do seu desejo de ser mãe representou, para mim, o retrato do jornalismo irresponsável e aético praticado na mídia "oficial" do Brasil hoje - fato muito bem comentado por meu amigo Murilo Araújo (leia na íntegra aqui):

"Certa ocasião, durante uma mesa de debates sobre transexualidade que eu assistia, ao final das palestras, um amigo meu foi todo feliz e curioso perguntar aos membros da mesa como havia sido para eles e elas a experiência de descobrir que 'aquele corpo não era seu'. (...) [Uma travesti] disse, com uma firmeza de brilhar os olhos, que o processo dela envolvia o sentimento exatamente contrário: 'você me perguntou como foi que eu descobri que esse corpo não era meu, mas eu só me entendi travesti no dia em que percebi que ele é meu sim, tão meu que eu tenho o direito de fazer com ele o que eu quiser'.

Ontem à noite, quando assisti a entrevista de Lea T a Renata Ceribelli, no Fantástico, relembrei essa ocasião de maneira muito forte, porque a situação me pareceu semelhante: uma pessoa que provavelmente nunca parou para pensar sobre a sua confortável condição cisgênera tentando tirar alguma informação de uma pessoa transgênera. A única – e triste – diferença na história toda é que, se durante a tal mesa de debates a resposta foi contundente e esclarecedora, as respostas de Lea T que a produção do Fantástico priorizou em sua edição não prestaram o mesmo serviço.

Toda a entrevista girou em torno do suposto arrependimento de Lea, que afirmou que não aconselharia ninguém a fazer uma cirurgia como aquela, que afirmou não se sentir ainda uma mulher completa, que ainda se referiu às mulheres como 'vocês' e não como 'nós'. Vi muita gente falando mal da modelo por isso, mas, eu questiono: quem somos nós na fila da balada para falar isso ou aquilo da experiência dela? A maneira como cada um vive a própria experiência de gênero e sexualidade é tão particular que não há razão para meter o bedelho.

Isso não significa que eu não me preocupo com as colocações de Lea, porque sou perfeitamente capaz de visualizar milhões de pais e mães de jovens transexuais espalhados pelo Brasil que arrumaram um motivo a mais para desencorajar o processo de redesignação sexual de seus filhos e filhas. 'Olha aí, tá vendo, você vai fazer isso, depois vai se arrepender, igual a essa moça – ou esse moço, sei lá', eu consigo escutar. Ainda assim, a modelo não pode ser responsabilizada pelo teor negativo que teve a matéria.

Revendo o vídeo com cuidado, é possível perceber que ela toca em questões que renderiam debates excelentes e que contribuiriam muito para o avanço da visibilidade das pessoas transgêneras. Lea mencionou que 'não é um pênis ou uma vagina que faz uma pessoa feliz', o que eu vejo como uma crítica muito clara aos padrões biologizantes de sexo e gênero que a gente tem por aí. Numa crítica talvez não intencionada ao machismo, Lea diz que quando é para o sexo, que os homens a reconhecem como mulher; para um relacionamento duradouro, nem tanto.

Enquanto isso, Renata Ceribelli, como se nada daquilo estivesse sendo dito, continuava com as suas curiosidades clichês, tão preocupada em entender aquelas coisas estranhas, que mal deixava a entrevistada terminar as respostas. O ápice do seu despreparo foi a cara completamente desconcertada que fez quando Lea afirmou que queria ser mãe – imagem que eu guardaria como evidência clara da incompetência que o jornalismo brasileiro não se preocupa em corrigir ao falar dessas sexualidades tão invisibilizadas.

Para encerrar, falando em visibilidade, vale destacar que hoje, dia 29 de janeiro, é Dia da Visibilidade Trans. Um dia para que possamos contar outras histórias, tão legítimas quanto a de Lea T, mas carregadas de um pouco mais de felicidade e satisfação. Histórias de mulheres que nasceram com pênis e homens que nasceram com vaginas, que com todo direito lutam por políticas públicas de reconhecimento das suas identidades, que pedem autonomia sobre os próprios corpos, sem serem considerados doentes.

Um dia feito para ajudar a gente a fazer com o nosso preconceito a mesma coisa que uma corajosa mulher transexual faz com o seu pênis: cortar e jogar fora, mantendo o prazer e a felicidade. Um beijo pra quem é travesti, um beijo pra quem é trans."

(Aliás, aqui tem um belo índice para as postagens relativas ao dia da visibilidade trans.)

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