8 de set. de 2012

não há liberdade solitária


Um dos grandes dilemas do mundo contemporâneo, que parece afetar todos os momentos do nosso dia a dia, é a desimportância da convivência. Em palavras mais duras: a descartabilidade da maioria das pessoas, a transformação do outro em lixo. Nosso tempo, ao afirmar laços cada vez mais exclusivos e resumidos, faz do outro uma ameaça. Num tempo em que a competição alcançou todos os terrenos, do mundo do trabalho às relações afetivas, o outro é um ladrão do meu gozo potencial.

A primeira perda desse estado de coisas é a noção de solidariedade. Como o território é de disputas permanentes, querer que o outro progrida e supere suas dificuldades apenas me deixa mais fraco no cenário da luta conspícua. Os problemas do outro são as minhas oportunidades. Essa lógica está presente em vários episódios da vida social. Como o próximo é meu inimigo potencial, é importante neutralizar todos os seus eventuais méritos e vantagens. Esse raciocínio está presente, por exemplo, na condenação das políticas de ações afirmativas.

A segunda consequência do estado de guerra hobbesiana de todos contra todos é a discriminação e o preconceito que passa a perseguir os “perdedores”. Mais uma vez há uma tradução desse processo no cotidiano. Para ficar no exemplo no campo educacional, sempre que uma escola convida um aluno a se retirar por causa de seus resultados, mais que defender uma seleção dos melhores ela está denegando seu compromisso com a educação. Se um colégio não serve para ensinar, mas para separar jovens em castas, há muito deixou de ser educandário, como se dizia antigamente. Os colégios que expulsam os alunos com problemas de aprendizagem em nome da defesa de um nível mais alto de competitividade é apenas uma instituição fascista. Tem pai que quer seu filho num colégio fascist

O terceiro aspecto que a competição exacerbada traz para a sociedade é o culto da solidão. A sociedade, fundada no incentivo à distinção, parece apostar no isolamento como lugar dos melhores. Há uma distância enorme de outros valores, como o da excelência construída coletivamente, que fundava o ideal de convivência nas sociedades tradicionais. O projeto de se tornar um homem excelente foi trocado pelo desejo de se tornar uma pessoa distinta. O sucesso em si se torna objetivo de vida.

Entre os antigos, a moral da excelência partia da vida comum, lançava mão de ambições intelectuais, se traduzia em obras para a coletividade e era coroada com o alcance da felicidade individual, que era o último estágio. Os homens e mulheres buscavam fazer da vida uma obra de arte, mais ainda, uma obra de arte comunicável, dialogada, compartilhada. Ser feliz era ser com os outros. Hoje, ser feliz é ser contra os outros.

O quarto elemento derivado dessa contenda que se tornou nossa vida é o incentivo ao egoísmo. As pessoas defendem seu interesse com tanto denodo que tudo que se opõe a ele se torna obstáculo a ser derribado. O egoísmo é o cimento de uma sociedade de indivíduos escandidos no tempo e no espaço. Vivemos, como disse Drummond, tempo de partidos, de homens partidos. Essa situação, além de isolar o indivíduo, supõe a derrocada de todo tipo de projeto coletivista. Entre eles a política.

O egoísmo é em si um defeito de alma. Não pode – e não vai – melhorar a sociedade e aprimorar a relação entre as pessoas. Só numa sociedade humana em sua raiz é possível acreditar no florescimento real das individualidades. Ou seja, o indivíduo, com todo o seu repertório de possibilidades, só se realiza de fato em companhia. Somos sempre com o outro. Defender contextos defesos da presença da alteridade é criar o terreno para o fracasso de civilização.

Essa verdade foi traduzida por pensadores de diferentes épocas e estilos. Platão, na República, garantia que só na pólis o homem pode se realizar. A afirmação de seus dons mais valiosos só está garantida na presença do interesse geral e do bem comum. Nesse sentido, a busca da construção social é o único caminho viável para a felicidade individual.

O mesmo se depreende da leitura de Marx, em sua defesa da superação dos estágios de desumanização próprios do capitalismo, na perspectiva de uma transformação das condições de vida para todos. A sociedade civilizada ou será socialista ou a barbárie. Independentemente da concordância com o pensador aristocrático grego ou o revolucionário alemão, a conclusão é que a liberdade é uma construção coletiva. Não há liberdade solitária.

A transformação dialética da solidão em solidariedade aponta para o exercício da política. A liberdade conquistada no isolamento não cria nada, apenas reafirma valores exteriores que nos afastam do conflito e da possibilidade de aprimoramento. A liberdade, quando exercida coletivamente, supõe a perspectiva de sua ampliação e alargamento a um número maior de pessoas. A política é o campo de exercício da liberdade responsável.

Talvez o maior inimigo dos projetos coletivos seja o cinismo. O período eleitoral é um campo privilegiado para a observação da vigência do cinismo entre nós. Quando, nos anos 1990, o psicanalista Jurandir Freire Costa identificou a presença de uma razão cínica na sociedade brasileira, ele parecia descrever, por meio de uma triste fenomenologia, como chegamos tão baixo em matéria de civilização. No âmbito do cinismo, os valores caducam, o individualismo impera, a cultura se dissolve, os sentimentos se tornam relações de poder.

O diagnóstico de Jurandir ajudava a entender problemas que àquela época pareciam insuperáveis: a violência, o preconceito, a anomia, a corrupção, a irresponsabilidade, o moralismo. Para muitos, o psicanalista desenhava um horizonte sem saída, uma aporia insuperável de nossos defeitos como nação. O que, no entanto, o pensador destacava em sua análise era que o estado de coisas vivido naquela quadra não impedia que se desenvolvessem ações meritórias, que políticos dignos se manifestassem, que funcionários públicos cumprissem sua função, que as pessoas se organizassem para enfrentar desmandos e realizar coisas.

Para Jurandir, não se tratava de minorar as ações individuais e coletivas, por um lado, nem em absolutizar o papel desagregador da corrupção do Estado, por outro. O que ele enxergava no horizonte era que a sociedade não aceitava se demitir de seus problemas (o que quase sempre é a origem dos totalitarismos). Havia ação e indignação. O cinismo não campeia onde há crença em valores intercambiáveis. O cinismo é sempre a arma de solitários.

A eleição é um momento de afirmar valores coletivos e projetos ampliados. O homem não é, diria Freud, um ser originariamente social. Somos sozinhos e egoístas de nascença. Por isso precisamos melhorar. O outro é o espelho de nossa pequenez. E nossa chance de crescimento.

- João Paulo, via

 

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