17 de dez. de 2012

da áfrica para áfrica


José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em artigo publicado no jornal Valor, 11-12-2012 (via):

Reduzir a história de um povo a uma agenda imposta de fora para dentro, por melhores que sejam as intenções, é o caminho mais curto para o fracasso.

Esse tem sido o movimento pendular de muitas soluções redentoras endereçadas ao que se convencionou chamar de "o problema africano".

A África não quer mais ser tratada como um problema dos outros; nem ficar subordinada a soluções concebidas à sua revelia.

Essa foi a mensagem clara da presidente da Comissão da União Africana, Nkosazana Dlamini Zuma, em encontro que tivemos em novembro, em Adis Abeba, capital da Etiópia, e do qual também participou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Quem só enxerga a derrota do continente ignora que o seu relevo abriga uma das últimas fronteiras agrícolas do mundo - 60% dela ainda não utilizada. Não existe outra hipótese de futuro para a África que não venha associada à conquista da segurança alimentar

Esse encontro foi o ponto de partida de uma aliança para ampliar os esforços em prol da segurança alimentar na África, selada pela Comissão da União Africana, Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês) e Instituto Lula.

Não estava em pauta lançar novos programas ou eleger uma bala de prata para o continente. A contribuição ali pactuada, no marco dos compromissos já firmados por governantes locais, como o Programa Compreensivo de Desenvolvimento Agrícola Africano (CAADP, na sigla em inglês), visa adensar as complementaridades entre iniciativas em curso para, dessa forma, obter um salto no conjunto. Sob aparência modesta pulsa uma profunda revisão de conceitos.

A África dispensa a ajuda ancorada na reinvenção da roda, que captura sua gente num eterno círculo vicioso de projetos autopredestinados a serem o marco zero da redenção local.

O salto significativo de que ela se ressente convoca as forças da cooperação a se engajarem no mais sensato, urgente e útil dos desafios: identificar brechas, erguer pontes entre ações bem sucedidas em curso; aumentar escalas; consolidar a sua coordenação.

Trata-se de um mutirão em aberto que, sob a liderança dos próprios líderes africanos, reúne outros parceiros internacionais, regionais e locais, incluindo atores multilaterais, públicos, privados e representativos da sociedade civil.

A FAO está convencida de que assim é possível vencer a fome. O papel da organização é apoiar esse impulso, não enxertar soluções prontas trazidas de fora.

Para a FAO, essa nova dimensão cooperativa vem ao encontro das energias tonificadas por mudanças recentes em sua dinâmica de funcionamento. A principal delas consiste em elevar as parcerias à condição de método e requisito de atuação de campo.

Também é importante superar divisões históricas entre iniciativas de desenvolvimento e ações de emergência. O respaldo técnico e as operações diretas precisam dialogar em tempo real no ambiente da ação e de forma permanente.

Erguer as linhas de passagem para a efetiva segurança alimentar das 53 nações que compõem o mosaico africano é plenamente factível dentro desses parâmetros.

Transformar agricultores de subsistência em pequenos produtores é um passo essencial. Outro, entender que a segurança alimentar depende de um conjunto de ações que excede a esfera agrícola e que dialoga também com outras políticas produtivas e sociais.

A fome em certas áreas do continente africano hoje decorre não propriamente da ausência de estrutura produtiva, mas de sua desativação pela recorrência de conflitos locais e regionais.
Ao pecado original das panaceias que ignoram as singularidades, a FAO responde com uma diretriz inegociável: a governança é o fator decisivo na construção da segurança alimentar.

Nada substitui o tripé formado por consenso político, programas inovadores e forte participação social. A articulação internacional é o corolário desse escopo - não o substitui. Foi essa baliza de discernimento altivo e parceria realista que comandou o encontro de Adis Abeba entre União Africana, FAO e Instituto Lula.

O amálgama principal do compromisso ali firmado é que a África não quer mais ser o sinônimo de fome no século XXI.

Hoje, a subnutrição penaliza um em cada quatro habitantes. Um contingente que cresceu de 175 milhões em meados dos anos 90, para cerca de 240 milhões de pessoas. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, de reduzir à metade a fome até 2015, registraram um percurso inverso aqui.

A mensagem que esses números carregam é categórica: não existe outra hipótese de futuro para a África que não venha associada à conquista da segurança alimentar. E não há tempo a perder. Para os famintos, o calendário da luta contra a fome só tem um dia: hoje, e não cabe perguntar que horas são.

Algumas nações do continente já assumiram essa perspectiva, resgatando uma prioridade abandonada nos anos 90, quando a ilusão na proficiência dos mercados globais levou muitos governos a descuidar da própria agricultura e do abastecimento.

Era um contrassenso econômico e demográfico. Embora a taxa de urbanização cresça velozmente no continente, 60% da força de trabalho africana ainda vive junto à terra; mais de 40% da população tem menos de 15 anos, só 4% estão acima de 65 anos. As mulheres formam um contingente superior a 520 milhões de pessoas e constituem a maior parcela da força de trabalho agrícola; desempenham, ademais, um papel estratégico que vai do plantio à provisão alimentar dos mercados locais.

Governança para investir, terras férteis, juventude e protagonismo feminino jogam a favor da esperança na África.

Quem desacredita da África e só enxerga a sua derrota ignora que o seu relevo abriga uma das últimas fronteiras agrícolas do mundo - 60% dela ainda não utilizada.

Há, ademais, um imenso potencial de trabalho e criatividade estocados nesse mosaico que o credencia a realizar esse que deve ser um dos capítulos épicos mais emocionantes do século XXI: erradicar a fome no berço original da humanidade.

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