15 de set. de 2012

cadeia, o fetiche social do Brasil


Não sou advogada, não estudei Direito. Me espanta, mesmo assim, a ideia torta de justiça que vejo – e leio, e ouço – por aí. Essa noção bizarra de que quem comete qualquer crime “tem que pagar”, que atribui à Justiça a função quase exclusiva de punir, “dar o troco”, ou “vingar” as vítimas, me parece um tanto equivocada. Em geral é esse tipo de interpretação sobre o papel da Justiça na nossa sociedade que naturaliza a categoria “crime” e reproduz uma série de fantasias quase fetichistas sobre a figura de um “criminoso”.

(...) O “crime” não é um dado da natureza. É uma categoria inventada na nossa sociedade. Nem toda quebra de lei é crime. É a legislação que define o que é crime e o que não é. Essa legislação é feita inteirinha por pessoas, que têm interesses, posicionamentos políticos, moral religiosa, moral laica; que foram criadas nessa mesma sociedade que se estrutura por meio de classes sociais, categorias raciais, e de uma matriz heterossexual de comportamento que é bem opressiva. Decorre disso que existe sempre um embate pela definição das leis. Nesse embate, as ideias que propagamos, reproduzimos e defendemos sobre o que deve ser a justiça, qual deve ser seu papel, pra que serve o sistema prisional, etc. são essenciais. Elas forjam os termos mais práticos da lei.

(...) No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça conta que mais de 40% da população carcerária é composta de gente que não foi considerada culpada, que não teve julgamento. Como socióloga, não sei explicar exatamente por que isto acontece, mas imagino que a mentalidade punitivista da população, em geral, tenha algo a ver com isto. As pessoas parecem sempre mais preocupadas em que se bote gente na cadeia do que em que de fato haja um processo justo. Os argumentos, circunstâncias e minúcias pouco importam: o que a população normalmente brada pelos quatro cantos (da internet, inclusive) é que o acusado tem que ir preso e pronto. Já compra-se imediatamente a ideia de que acusados são culpados, o que é deveras problemático.

O julgamento do mensalão é um prato cheio para observar a expressão deste tipo de pensamento. Pergunte às pessoas na rua: não lhes interessa quem é de fato culpado de algum crime, quem se enquadra na lei e quem não se enquadra. A população julgou, seguindo a mídia de massas, que se jogue todo mundo na cadeira e fim. A mesmíssima população que, enquanto posta cartazes “contra a corrupção” no Facebook, sonega seus impostos, transfere suas multas de trânsito por altíssima velocidade (e reclama de uma inexistente “indústria da multa”), entre outros pequenos atos de corrupção cotidianos. Colabora, ainda, para que a corrupção política no Estado continue. Como? Defendendo que o voto continue obrigatório, votando em qualquer candidato para vereador, ou “deixando a política para os políticos”. Pra ficar em exemplos corriqueiros. “Detesto política” ou “sou apolítico” vêm em geral das mesmas bocas que se dizem “contra a corrupção”. Assim fica difícil.

Você não é menos criminoso por ser branco e de classe média/alta. Só tem mais dinheiro e mais recursos pra não ser preso sem julgamento. Aproveite a oportunidade de ter o mensalão sendo julgado (...) e eleições municipais assim, no mesmo ano, uma coisa pertinho da outra, e pense no que é que significa, de fato, “justiça”. Assim, com “j” minúsculo.

(Marília Moschkovich, na íntegra aqui)

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