9 de dez. de 2012

das mulheres de tromba e das damas de paus


De Kamila Oliveira, no Minoria é a Mãe (vale a pena ler na íntegra, aqui - mas, se o tempo for curto, leia este depoimento. E só.):

Muita gente - muita mesmo - confunde sexualidade com identidade de gênero. Ou talvez seja mais preciso dizer que uma boa parte de certos preconceitos na nossa sociedade foi construída por cima dessa confusão - entre muitos outros fatores.

É essa confusão, que na realidade nem é tão sutil quanto possa se pensar, que faz com que, por exemplo, as pessoas achem que homens gays “querem ser mulher”, ou que mulheres lésbicas “querem ser homem”. A lógica desse raciocínio implica que se sentir atraído por mulheres é uma característica intrínseca ao fato de “ser” homem. Logo, um homem que não se sente atraído por mulheres só pode estar querendo “virar” mulher (e a invisibilização da bissexualidade mandou um beijo também).

Acontece que ser homem ou mulher não tem necessariamente a ver com o fato de ter cromossomos XX ou XY - que não são as únicas configurações possíveis em humanos, mas isso não nos ensinam na escola; não tem necessariamente a ver com ter sistema reprodutor masculino ou feminino - existe muita variação entre esses dois modelos que aprendemos a considerar normais; não tem necessariamente a ver com o modo como você se veste ou as cores que usa - isso é uma construção social e muda com o tempo; não tem necessariamente a ver com as pessoas pelas quais você se sente atraído - ou seja, nada tem a ver com sexualidade; e, principalmente, não tem necessariamente a ver com o gênero que lhe foi designado quando você nasceu. (...)

Pense sobre todas as vezes em que você ouviu alguém dizer (ou até mesmo disse) que homem e mulher “de verdade” são somente aquelxs com determinada configuração cromossômica; e lembre-se então que, quando vemos uma pessoa na rua, não estamos escaneando seus cromossomos pra saber com certeza se são XX ou XY ou qualquer outra configuração, estamos na verdade apenas nos baseando em características físicas ou de vestuário. Se você for cis, pense no fato de nunca ter precisado passar por um verdadeiro dilema toda vez que teve que ir a um banheiro público. Pense se faz mesmo sentido que tanta gente se ache no direito de invalidar as identidades de outras pessoas.

Agora, um convite: leia o relato desta mãe, aqui. Ou, para uma reflexão sobre a relatividade das representações de gênero: você já ouviu falar das virgens juramentadas da Albânia? Leia aqui. Mas, se o tempo for curto, leia este depoimento. E só. 

* * *

De Daniela Andrade, no Bule Voador (leia na íntegra aqui):

(...) Hoje em dia, apesar de vermos mais travestis e transexuais invadindo muitos espaços que até então, a nós era vetado, não podemos atestar pela qualidade de tudo quanto é dito ou escrito a esse respeito. (...)

Todos sabemos que está na moda não ter preconceitos, não é mesmo? Foi algo conseguido pelo movimento gay e pelo movimento negro, suponho: já que estiveram sempre mais evidenciados. Algumas pessoas já me procuraram e disseram que gostariam de ter uma amiga transexual e eu me senti quase como um animal exótico: “seria tão bom ter um protegido pelo IBAMA, que ninguém mais tenha, em casa: seria de uma originalidade só!”. Ora essa, quando não, muitos usam das premissas que se salientam a todo tempo: “tenho curiosidade de saber como é transar com vocês” ou “tenho curiosidade como ficam os genitais de vocês”. Afinal de contas, a que servem travestis e transexuais? Sexo! É o que vem à cabeça da maioria esmagadora.

Se travesti, automaticamente associam à prostituição. Se transexual, automaticamente associam àquela cirurgia que inadvertidamente propagandeou-se aos quatro cantos que se intitula “mudança de sexo”. A tal da “mudança de sexo” é a “opção sexual” do mundo trans. Termos que todos usam por todo o tempo, sem se importar se adequado ou não, seja como for, vamos dizer que são apenas… termos. Claro, por que não? E, vamos continuar seguindo com a visão de que orientação sexual é opção, é escolha, que um belo dia acordamos e pesamos na balança os prós e os contras de ser hétero, gay, bi… até que possamos nos decidir; ou de que uma cirurgia mudaria sexo de alguém, e sexo aqui não é entendido por grande parte apenas como genital, mas como toda a compleição e formação identitária de um indivíduo. É como se, num passe de mágica, alguém deixasse de ser homem e passasse a ser mulher.

Boneca, dama de paus, mulher de tromba… são apenas termos, digamos assim corriqueiros. Não fazem mal e quem o diz, logo lança mão do “não tem nada a ver com preconceito”.

Bem sabemos que as palavras têm força de lei, elas materializam atos e fatos. (...) Mas, curiosamente, muita gente se refere a nós (as travestis e as transexuais) com nomes e termos que SÓ se ligam ao fetiche, à zoomorfização, ao animalesco, à objetificação. É como se, ainda que soubessem que definimo-nos como travestis e transexuais, isso não importasse. O importante mesmo é o eco da turba, e a turba grita que a nós só é possível pensar quando relacionado a sexo. E se sexo pode ser feito com ninguém (masturbação), ou pode até mesmo se usar de objetos inanimados (e animados [!]) para ter como único fim o gozo do próprio sujeito, logo podemos associar sexo aos objetos e, se podemos dizer que sexo não é o mesmo que amor, então vamos continuar fazendo associais das mais grotescas e pejorativas ao nos referirmos a travestis e transexuais.

(...) Mulheres de trombas, damas de paus, bonecas não são tão humanas quanto as demais – ainda que seja necessário aqui frisar o quanto as mulheres não travestis e não transexuais ainda sofrem com as perversas sanções do patriarcado que impôs que mulheres são inferiores aos homens, não podemos deixar de verificar que as mulheres que não nasceram com uma vulva/vagina estão a um ou a muitos degraus acima da tabela daquilo que o homem (entendido aqui como humanidade) consegue conceber como real. Estamos falando de pessoas que não são vistas nem como homens e nem como mulheres, mas uma casta inferior, uma casta não humana, a casta dos animais de tromba – que possivelmente deveriam estar em um circo!

(...) Ser travesti e ser transexual é sofrer o que sofrem as mulheres já que, quando é conveniente, o machismo as vê como mulheres e, como mulheres, inferiores; é sofrer o que sofrem os gays, pois afinal de contas, quando convém, os homofóbicos as vêem como gays “que querem virar mulher” e isso é até pior que ser o “gay padrão”; é sofrer o que sofre o negro pois, assim como o negro não consegue esconder a cor da pele, grande parte das travestis e transexuais também não conseguem esconder o que são – as que chamamos de “passáveis”, e por “passável” entenda aquelas travestis e transexuais que “ninguém diria que é travesti ou transexual por ser tão parecida com mulher” (é o que dizem em êxtase os admirados com as mimetizações tão perfeitas “dessa gente”); é sofrer o que sofre o pobre excluído e vitimado, já que grande parte também dessas travestis e transexuais não nasceram em berço esplêndido e tiveram que ir à luta de alguma forma para não morrer de fome, e em um país como o Brasil em que travestis e transexuais só podem ser associadas à prostituição, raros empresários irão querer ter em seus quadros funcionários associados à prostituição e logo… o que lhes resta? Isso mesmo: a prostituição! E portanto, também é sofrer o que sofrem as prostitutas: usadas e abusadas por um sem-fim de homens que depois do gozo as dizem imundas.

(...) Temos fugido das desgraças vida afora, que nos cobrem das certezas dos jornais que mostram pais expulsando travestis e transexuais de suas casas, escolas excluindo ao não respeitarem a identidade e os nossos nomes, as empresas batendo as portas contra nossas caras de… prostitutas-nascidas, a sociedade rindo-se pelo canto da boca nos coletivos, nas ruas, nos clubes e nos shoppings, quando passamos, ou nos apontando e tecendo comentários dos mais comezinhos. Temos fugido de tudo quanto o ser humano nos permitiu: o covil de animais exóticos onde nos fizeram reféns. E, temos demonstrado a força que move uma pessoa que enfrentou exércitos, que sangrou de morte, mas que permaneceu lépida e altiva. Esperando o tempo todo, com toda a dor mas com toda a coragem o dia que não mais nos verão como excreções e secreções, esperando não imóveis, mas ousadas. Eu mesma, eu sou uma ousada de espírito, por me colocar a falar em espaços onde de antemão sou considerada doente mental – é assim não é? É assim que nos vêem, e se nos deixam falar é por que como todos sabemos, está na moda não ter preconceitos.

Daniela Andrade, redatora do Bule Voador (na íntegra aqui)

Fonte: Alegria Falhada

Em tempo: depois de muita discussão, a APA (Associação Americana de Psicologia Psiquiatria) decidiu tirar da próxima edição do DSM-V, seu manual de diagnóstico, a ser lançada no primeiro semestre de 2013, a classificação de transexualidade como "Transtorno de Identidade de Gênero". Buscando mais informações sobre o assunto, recebi da Kamila (autora do texto lá em cima) a dica deste depoimento. Não deixe de ler. 

Atualização em 10-12-12:
Finalmente encontrei (no blog Alegria Falhada, da Daniela Andrade, autora do texto acima - aqui) a informação e uma análise mais acertadas:

"Despatologizou no entender de alguns e continua psiquiatrizada para todos. Trocar transexualidade de categoria (foi de Transtorno de Identidade de Gênero para Disforia de Identidade de Gênero (GID) - detalhe que permanece o sufixo patologizante -ISMO) não significa despatologizar no entender de muitos psiquiatras, inclusive da academia americana. Os "famosos" psiquiatras Dr. Robert Spitzer e Dr. Paul J. Fink dizem que os comportamentos e as experiências que são vistas no "transexualismo" são anormais e constituivas de disfução. E há ainda os psiquiatras que ficam em cima do muro, Dra Katherine Wilson sugere que o diagnóstico deva ser feito para Disforia de Gênero sem ênfase na não conformação com o gênero.

A troca de lugares no DSM continua causando a mesma coisa: de que ser transexual é não ser um homem ou mulher normal."

Leia na íntegra aqui.

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