14 de dez. de 2012

o dia internacional do direito à verdade

Foto via Carta Capital

De Egon Dionísio Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Mato Grosso do Sul, via Amai-vos (leia na íntegra aqui):

Numa audiência pública despretensiosa, presidida pela aguerrida deputada Luiza Erundina, o Brasil preencheu as condições para levar à aprovação do Congresso a instituição do "Dia Internacional do Direito à Verdade". O Dia 24 de março, em homenagem a Dom Romero das Américas, foi instituído pela ONU, em 2010, como a data comemorativa ao Direito à Verdade em todo o mundo.

Os participantes da audiência pública insistiram na importância simbólica dessa data, pois será um momento a mais para que o país busque fazer justiça, recuperando a memória perigosa das vítimas da secular resistência no país e no continente.

Em nome do Cimi expus algumas reflexões que passo a socializar:

Ontem aqui nesta casa, um Ato Público em apoio à causa indígena, promovido por esta mesma Comissão de Direitos Humanos, duas manifestações chamaram atenção. Uma delas foi quando a desembargadora, juíza Kanarik não conteve as lágrimas ao afirmar: "é inacreditável que em pleno século 21 tenham que afirmar: nós somos humanos, nós temos sentimentos como vocês". Só faltava algum papa ter que fazer uma bula afirmando que os índios têm alma. Abominemos de uma vez por todas essa mentalidade criminosa que ainda norteia muitas das elites, governantes e Estados nacionais. Como sociedade de verdade, façamos justiça declarando na prática nosso anátema a essas afirmações e posturas genocidas, racistas e fascistas. Desconstruir e descolonizar a memória significa uma decisão política com estratégias concretas neste sentido. Deixemos-nos inundar com os nobres sentimentos que vem da raiz deste continente, de seus povos originários, dos heróis da resistência.

Desconstruir a memória do invasor, do colonizador, do capital nacional e internacional, ontem e hoje, significa não apenas reconhecer a pluralidade de povos, culturas, crenças, organizações sociais e direitos consuetudinários em nosso país, mas requer a imediata devolução de seus territórios, e as condições para viverem em paz e com dignidade. Isso requer rever o panteão dos heróis, dentre os quais estão vários matadores de índios, ter a coragem de fazer fogueiras com livros que continuam veiculando mentiras sobre os povos indígenas em nossas salas de aula, veicular a verdade com relação à realidade, lutas e valores dos povos indígenas. Dizia ontem, nesta casa a indígena Pierangela Wapixana, de Roraima, "é difícil os não índios nos entenderem, enxergarem além das aparências, a nossa relação com a mãe terra e a natureza, nosso espírito, nossa alma, nossos sentimentos".

Infelizmente continuamos sob o manto da arbitrariedade que estimula a violência, promove a impunidade e sacraliza a injustiça. Precisamos urgentemente descolonizar não apenas a memória, mas como diz Fernando Ortiz, em recente entrevista: "A descolonização deve ser não apenas política (do poder) e econômica, se não também mental, cultura e ideológica".

Portanto, temos uma árdua e imprescindível tarefa de mudanças profundas, sistêmicas e mentais, para o qual a criação da comissão indígena da verdade e o dia internacional da verdade poderão contribuir.

Os Kaiowá-Guarani que ontem estiveram no Congresso, em Brasília, disseram com todas as letras "não aguentamos mais". O genocídio em curso, conforme a deputada Érica Kokai, nos desafia e impele não à repetição de discursos e falas bonitas, mas a ações concretas e inadiáveis. Certamente não queremos entrar para a história como cúmplices e exterminadores de povos. Esses povos nos repetiram milhares de vezes que tem que se começar pelo reconhecimento e garantia de seus territórios. Com isso esperam diminuir a absurda violência a que estão submetidos. E outro passo urgente é julgar e punir os assassinos das lideranças indígenas. "Mata-se índio, como se mata um cachorro", nos dizem as lideranças em suas falas. E nada se faz. Nenhum matador de índio no Mato Grosso do Sul foi julgado e punido. Ao contrário centenas de nossos parentes estão mofando nas cadeias da região. Centenas de processos que envolvem nossas terras estão paradas nos tribunais e não são julgadas para permitir a continuidade dos processos de regularização. Uma liderança observou que a "justiça é lenta”, para os índios, os negros, os pobres, mas funciona rapidamente para quem tem dinheiro.

(...) Apesar do mar de sofrimento, violência, injustiça e opressão em que está mergulhado o Continente e nosso país, a institucionalização do dia internacional de Direito à Verdade, soa como um leve ruflar das asas de um beija flor em meio a um temporal.

Porém, passos importantes estão sendo dados em países como Bolívia e Equador, que têm o Bem Viver inscritos em suas constituições e estão caminhando para o reconhecimento dos Direitos da Mãe Terra – Pachamama, os Kaiowá-Guarani estão construindo importantes estratégias comuns nos quatro países (Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia), para mutuamente se apoiarem na luta por seus direitos, especialmente os territórios. O Conselho Continental da Nação Guarani é uma experiência esperançosa no contexto de luta e reconhecimento de direitos, para além das fronteiras dos países.

Na busca da Terra Sem Males somos todos caminhantes guiados e precedidos por nossos irmãos Kaiowá Guarani. Que o dia 24 de março se torne não apenas mais um dia comemorativo, mas que seja o dia de mudanças em nossas mentes, corações e estruturas na perspectiva da convivência respeitosa e digna de todos os povos.

- Egon Dionísio Heck (leia na íntegra aqui)

E mais: leia aqui o relato pungente de Pedro Gustavo Gomes Andrade, advogado membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG e membro dos Advogados Sem Fronteiras, de sua viagem às comunidades Guarani-Kaiowá.

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